Capítulo 1

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Heloísa

O que fazer quando suas mãos clamam pela tinta e pelo desenho, mas sua mente é um grande vazio branco e sem fim? Aquela arte, que tinha sido meu conforto desde pequena, agora me deixava exausta e me fazia amassar folha atrás de folha, mirando a lixeira em seguida. Acho que devia fazer como meus colegas mais dedicados: focar na aula de matemática que acontecia no notebook na minha frente e pensar no vestibular que está mais próximo do que nunca.

— Essa matéria cai muito no ENEM e vocês precisam... —a professora falava, mas minha mente divagava e meus olhos pesavam.

Costumava desenhar nas bordas dos cadernos para manter as mãos ocupadas e a mente atenta, uma forma de me manter mais centrada. Mas, desde que essa pandemia me prendeu em casa, há alguns meses atrás, não conseguia gostar de nada que fazia. Meus desenhos tinham se tornado desleixados e por mais que meus pais me motivassem, eu não conseguia enxergar neles qualquer beleza ou progresso. Minha conta de desenhos no twitter estava tão parada que as notificações já tinham se tornado coisas como "Mari Styles começou a seguir Luluzinha." — e eu não conseguia me lembrar de nenhuma das duas.

As coisas tinham piorado, drasticamente, quando meu irmão se mudou para um apartamento à 20 minutos do meu. A companhia de meus pais não é ruim, Marcelo e João são carinhosos e sempre me apoiam, mas também são exigentes e um pouco super protetores, o que pode ser cansativo quando se está presa em um apartamento de poucos metros quadrados com os dois 24 horas por dia, sem o meu melhor mediador de discussões.

As manhãs eram, em sua maioria, a parte mais tranquila do dia, já que João ainda tinha que trabalhar presencialmente e Marcelo passava o tempo em seu escritório. O negativo era ser forçada a encarar um computador e ligar o microfone de tempos em tempos para fingir que estava entendendo alguma coisa. Não é possível que alguém esteja entendendo química orgânica, né? Devem estar todos fingindo também.

— Estão acompanhando? —a professora perguntou.

Me inclinei para perto do notebook, abrindo o chat apenas para digitar a maior mentira que vinha contando todos os dias: tá tranquilo, prof! Cliquei no enter e me joguei na cadeira novamente, a cabeça caindo para trás enquanto eu revirava os olhos. Eram apenas oito e meia da manhã e eu já me sentia exausta.

Arrumei a postura novamente, tentando me sentar de acordo e ouvir, de verdade, qualquer palavra que a idosa na tela dizia. Porém, quando o fiz, meus olhos foram imediatamente em direção a parede, atrás do computador, cheia de desenhos antigos pregados, acima de onde os pincéis e canetas estavam largados.

O que aconteceu com aquela garota cheia de vida, que pintava, bordava, tingia e contava histórias através de desenhos?

A pandemia já durava a muito tempo e não havia previsão de quando chegaria ao fim — sensação que, se me demorasse demais presa à ela, acabava me sufocando e estragando todo o meu dia de vez. Ainda podia me lembrar do começo da quarentena, quando via aquilo como uma pequena férias de três semanas e fazia tantos desenhos que até minha tinta preta tinha acabado. Agora, já podia ver a poeira se acumulando em cima dos papéis de aquarela e tudo que eu sentia vontade de fazer era deitar e passar horas vendo vídeos engraçados no celular.

A aula acabou, me liberando formalmente para um intervalo de 10 minutos, e me levantei para pegar uma maçã na cozinha. Estava atualizando meu whatsapp, esperando, em vão, por alguma mensagem dos meus amigos, quando tropecei no tapete do corredor. Contive um grito e estendi a mão para a parede mais próxima para me apoiar. Ela acabou agarrando a maçaneta da primeira porta á direita, com força e, graças a ela, não cai de cara no chão.

Amor ao LadoOnde histórias criam vida. Descubra agora