Capítulo 3

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Gabriel

Heloísa foi a coisa mais interessante que aconteceu comigo durante a quarentena. No começo tinha sido bem difícil conseguir sua atenção. E, quando a conseguia, acabava sendo impossível conter a gargalhada diante de suas expressões bravas, dedos do meio e tentativas de fingir que eu não existia. Porém suas reações exageradas apenas tornavam ainda mais divertido provocá-la. Fazia tempo que eu não exercitava minhas habilidades de ser irritante e foi muito satisfatório ver que ainda não tinha perdido o talento.

Naquele sábado, eu decidi tentar uma das minhas últimas alternativas. Minha mãe já vinha ficando irritada comigo por estar sempre aprontando algo durante as aulas — e ela sempre teve o dom de entrar em meu quarto nos momentos mais inoportunos — então não podia mais continuar aquele joguinho. Peguei a minha guitarra assim que ela saiu para fazer compras, já com um plano formado em minha mente.

E nada se comparou a sensação de felicidade que me dominou quando ela apareceu, os cabelos bagunçados presos em um coque e a expressão sonolenta de quem tinha acordado contra sua vontade. Tinha passado tanto tempo tentando conseguir que ela falasse comigo que não pensei exatamente no que falar — o que me fez me sentir como um grande idiota. Felizmente sempre fui muito bom em improvisos e acabei conseguindo me virar surpreendentemente bem. Estava óbvio que ela só queria se livrar de mim o mais rápido possível, mas, aos poucos, pude ver seus ombros relaxarem e seu tom de voz se tornar mais gentil — ou apenas mais tolerante.

Ao final, me dei conta de que não queria parar. Porque isso significaria voltar ao tédio do meu quarto, encarando o teto sem rumo ou sem qualquer ânimo. E, por mais incomum e confusa que aquela interação fosse, era a primeira vez que falava com alguém novo em muitos meses. Não tinha percebido como sentia falta de coisas assim até aquele instante. Sempre fui um garoto extrovertido, agitado e que mal parava em casa. A quarentena estava sendo um inferno astral sem fim — e nunca nem acreditei em signos. A vizinha do prédio ao lado estava, de uma forma maluca, tornando meus dias mais interessantes.

E era por isso que eu sabia que precisava deixá-la dormir. Se queria continuar com aquela brincadeira, era necessário convencê-la a falar comigo mais vezes. Fechei as cortinas ao me afastar da janela para me impedir de gritá-la novamente, sentindo meu coração saltando no peito com a empolgação diante da possível nova amizade.

Quando minha mãe chegou em casa, o porteiro contou sobre o barulho e eu levei uma bronca, mas tinha valido a pena.

A semana que se seguiu foi ainda melhor.

Na segunda-feira, Heloísa abriu as cortinas e começou a andar de um lado para o outro pouco depois das dez da manhã. Eu estava em mais uma aula tediosa de português, equilibrando uma caneta sob o lábio, quando a vi. Parecia um pouco perdida e zonza, como se não se lembrasse onde tinha colocado seu rolo de tinta ou apenas não sabia o que estava fazendo ali.

Sorri de lado e peguei um papel de caderno para formar um aviãozinho de primeira linha. Abri a janela e, aproveitando a distração da vizinha, impulsionei o pequeno objeto pelo ar. Observei enquanto ele fazia uma curva e contive um grito quando ele quase bateu na parede, mas, por pouco, ele acertou o alvo, caindo perto de Heloísa.

Ela se virou, com a testa franzida e os cabelos soltos. Seus olhos encontraram os meus e eu me apoiei no parapeito, sorrindo com uma expressão inocente. Não podia falar nada sem que os vizinhos voltassem a reclamar, o que faria com que minha mãe colocasse uma tranca infantil na minha janela, então apenas apontei com o queixo para o avião que agora ela segurava. Não sabia definir ao certo se ela estava contente ou incomodada com aquela nova forma de conversar, mas queria acreditar na primeira opção.

Amor ao LadoOnde histórias criam vida. Descubra agora