TERCEIRO ATO - LE CHANT DES SIRÈNE

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Estava novamente deitado, encarava o teto pálido em uma inercia quase continental quando me atrevi a desviar o olhar para o relógio. Já passava das dez da manhã, provavelmente o julgamento do irmão Fritz já caminhava para o veredito. Tentei me manter deitado, mas uma vez vencido pela curiosidade me levantei daquele leito e me arrastei pelos corredores.

Quanto mais eu andava na direção do refeitório mais nítida ficava a voz de Dom Carlos. Então o ouvi pronunciar o veredito; culpado.

Não entrei no refeitório, mas da onde eu estava conseguia ver a grande mesa onde estava sentado o Colégio Eclesiástico. Vi o irmão Fritz, e vi suas lágrimas, não me pareciam lágrimas de arrependimento. Vi quando o Capitão lhe entregou o terço com o crucifixo de prata. E vi todas aquelas pessoas que assistiam ao julgamento como se aquilo fosse um espetáculo da Broadway, não estavam lá por Jeremy ou por justiça, mas por pura futilidade.

Aquilo já estava me embrulhando o estômago. Dei meia volta para retornar a enfermaria, porém minhas pernas fraquejaram e entrei em um processo que queda que foi interrompido por Phillip e os outros garotos:

— O que diabos você esta fazendo aqui Daniel? — disse Phillip — Vamos voltar para enfermaria!

Lentamente os meninos me levaram de volta a enfermaria:

— Sam, vá buscar algo para ele comer e leve o Ben com você.

Assim que os meninos saíram Phillip sentou-se na cadeira que estava do lado da minha cama:

— Você deu sorte por ter sido nós e não a Clara a encontrar você!

— Como foi o julgamento? — não queria falar sobre Clara.

— Igual a todos os outros que já ocorrem aqui desde que eu cheguei!

— E foram muitos?

— Não, mas quase todos terminaram com alguém exilado.

— Exilado?

— Sim, é a pena máxima aqui, mas se você levar em consideração que todos aqui não têm outro lugar para ir é o mesmo que pena de morte.

— Nós os mais velhos chamamos isso de Eufemismo Phillip, com o tempo você vai descobrir que o mundo esta cheio dele.

— Às vezes você fala como Dom Carlos! — vi um leve sorriso se formar em seu rosto.

— Amém!

Silêncio:

— Desculpa não ter vindo ontem.

— Não conte a Clara que me viu andando e estamos quites. — sorri para ele.

— Por mim ela nunca vai saber!

Fiquei na enfermaria por mais dez dias, e era diariamente visitado por Jorge, Phillip, Sam, Ben e às vezes pelo Capitão. Porém Clara limitava-se a me ver só quando necessário, não olhava em meus olhos e só falava comigo para perguntar se eu estava sentindo alguma dor. E para piorar, a noite eu era constantemente atormentado por aquele maldito sonho que sempre terminava da mesma forma.

Recebi permissão para sair daquele simulado de hospital no anoitecer de uma quinta-feira, mesmo sem apetite me sentei à mesa com os meninos. Porém em certo ponto meu estômago protestou contra aquele ambiente. Por algum motivo o cheiro da comida incomodou meu amado órgão. Sem ter muitas opções me levantei e decidi tomar um ar fresco, era a primeira vez em quase duas semanas que eu via o céu estrelado. A passos lentos eu caminhei em direção a popa do navio, o vento úmido abraçava-me e acariciava meu rosto. Parei próximo ao parapeito; senti um leve tremor dominar meu corpo enquanto observava o lugar da onde eu tinha caído:

— Espero que não queira se jogar de novo!

— Acredito que nem se quisesse o faria de novo. — me virei para encarar Clara.

— Por que esta aqui?

— Por que você esta aqui?

Entramos em uma guerra silenciosa, seu olhar afiado e gélido parecia perfurar meu corpo. Porém mesmo assim mantive meus olhos fixos nela e pouco a pouco eu me perdi em seu olhar, mergulhei naquela negritude como um navio indo a pique. Eu estava vendido, desarmado e indefeso:

— Me senti mal, vim tomar um ar. — confessei.

Clara suspirou profundamente, seu olhar não desviou nem um milímetro si quer:

— Você sabe dirigir?

— Por que esta me perguntando isso?

— Me responda! Você sabe dirigir?

— Sei! Digo, mais ou menos.

— Já serve. Me encontre no refeitório hoje ás 00:30. — antes que eu pudesse responder ela se foi a passos largos. Fiquei ali por mais algum tempo observando aquela paisagem e quando estava prestes a retornar ao interior do navio, ouvi alguém me chamar.

A alguns metros de mim via-se uma figura pequena e sorridente; Charles. Meu irmão correu em direção a rampa, mas parou antes de desce-la:

— Venha logo Daniel! – lentamente eu caminhei em sua direção.

Quando cheguei a parte mais baixa da rampa não vi mais meu irmão:

— Aqui Daniel! – disse ele acenando de entre as árvores.

Peguei uma das lanternas que iluminavam o caminho para o galpão e guiado por Charles, enveredei entre as árvores. Não sei ao certo por quanto tempo caminhei. Estava prestes a perguntar a Charles onde estava me levando quando sua pequena figura parou do nada. Na nossa frente encontrava-se a cena de um acidente; um caminhão havia de forma violenta com uma árvore. Busquei a figura de meu irmão com os olhos, mas eu já estava sozinho ali.

Aproximei-me devagar do veículo, sua frente estava bem danificada e a porta do motorista havia sido arrancada, movi a lanterna para o interior da cabine e vi o estofado do banco rasgado como se tivesse sido vítima de uma chuva de canivetes. Dei alguns passos para trás e sobre a luz bruxuleante da lanterna analisei o veículo. Era um antigo Citroen idêntico ao que a Força Expedicionária usou na noite em que resgatamos Jorge.

Aquele era o caminhão que faltava no galpão. O que Max e sua equipe usaram.

Ao retornar ao navio, não sabia que horas eram então fui direto para o antigo restaurante da primeira classe. As luzes em meia fase deixavam aquele ambiente com um ar gótico e medonho.

— Você não tem medo de ficar nesse escuro? – me virei para olhar a pessoa que falava comigo, mas tudo que vi foram seus contornos na escuridão.

— Sim, mas tenho mais medo de ficar novamente sem te ver.

— Me desculpe por não ir na enfermaria com frequência.

— Eu sinto sua falta. — confessei.

Ouvi Clara respirar fundo:

— Venha comigo, quero te mostrar algo! — em meio aquela escuridão sua mão agarrou a minha e em seguida Clara me arrastou pelos corredores até chegarmos ao convéns onde uma pequena figura parecia nos esperar.

— Tudo pronto? Perguntou Clara para Phillip.

— Sim! — respondeu o garoto balançando um chaveiro com duas chaves.

— Obrigado.

— Obrigado nada, você sabe o trabalho que me deu fazer isso?

— Eu imagino. E por isso você será muito bem recompensado.

— Assim espero!

— Chocolate?

— Não, muito chocolate.

— Okay! — disse Clara assim que pegou as chaves da mão do garoto. — Agora vá dormir.

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