QUARTO ATO - CREPÚSCULO

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COBRIMOS NOVAMENTE o carro com a manta e negra e em seguida iniciamos nossa caminhada de volta para o navio. As primeiras luzes da alvorada já iluminavam o céu quando subimos a rampa. Os vigias nos observavam de seus postos, mas isso não nos incomodou. O que nos trouxe certo incômodo e estranheza foi encontrarmos a figura de um Phillip cabisbaixo, o que era inédito para mim:

— O que ouve? – indagou Clara.

— O Capitão quê falar com você.

— Eu irei falar com ele. – disse Clara.

— Não é com você que ele deseja falar, é com Daniel. – ela me encarou duvidosa.

— Tudo bem, eu irei vê-lo! – as mãos de Clara se uniram as minhas, sorri para ela.

Sozinho caminhei por aquele labirinto de corredores que agora me eram tão familiares quanto à casa que um dia morei com minha família. A porta do gabinete do Capitão era idêntica às demais, já estive aqui uma vez, porém desta vez, por algum motivo a atmosfera me pareceu mais pesada. Bati três vezes na madeira com os nós dos dedos e entrei após ouvir a permissão ecoar do outro lado:

— Sente-se. – ordenou o Capitão sem nem olhar para mim.

Sentei-me e mantive o olhar fixo na pessoa do Capitão. Mesmo com o dia já raiando as persianas do gabinete permaneciam fechadas incumbido o sistema artificial de iluminar o ambiente, reservando a aquele momento um ar de interrogatório:

— Você teria a amabilidade de me contar aonde você e a senhorita Walls foram essa noite?

— Posso exercer meu direito de permanecer em silêncio? – perguntei. Os olhos do Capitão ganharam um aspecto afiado e um sorriso canino formou-se em seus lábios.

— Claro que sim, mas se assim o fizer, terei que perguntar a senhorita Walls, tenho certeza que ela não se importara de me responder.

Relutei por um momento, mas cedi:

— Fomos à cidade.

— E foram fazer o que lá? – as lembranças daquela noite dançaram em minha mente.

— Assistir uma Verdi.

— Me pergunto se você tem ciência do tamanho da irresponsabilidade e principalmente do risco que vocês correram, todo o norte da França está sobre controle dos alemães e vocês decidem passear pelas ruas da cidade com um carro de vinte anos atrás!

Não respondi.

Em resposta a minha inércia o Capitão soltou um longo suspiro e se levantou, me observou por alguns segundos e então se virou para abrir as persianas. A luz solar inundou o ambiente subjugando totalmente a iluminação artificial, foi nesse momento um feixe de luz refletido acertou em cheio os meus olhos, por instinto busquei a origem do incomodo. Sobre a mesa, parcialmente encoberto por livros e papeis vi o que parecia ser uma haste de prata polida, porém muito arranhada. Senti que já tinha visto aquilo antes:

— Danie, sei que você é um rapaz inteligente e que saberá controlar seus impulsos juvenis, porém caso tenha uma recaída, peço que pense nas outras pessoas que moram aqui, atualmente Clara é a única pessoa que possui algum conhecimento sobre medicina. – foi minha vez de suspirar e ficar de pé, queria muito sair daquele lugar. Da sua presença.

— Eu compreendo, realmente foi um ato de irresponsabilidade, mas lhe dou minha palavra que não irá se repetir! – o Capitão sorriu novamente para mim, senti meu corpo tremer.

— Agradeço pela compreensão, sinta-se livre para voltar a suas atividades.

Por um breve momento foquei meus olhos naquele objeto camuflado entre os livros, foi rápido, mas o suficiente para identificar entre os arranhões dois caracteres cravados em letra maiúscula. Um S e um F.



— O que o Capitão queria? – perguntou Clara.

— Saber aonde fomos. – respondi.

— E o que você disse?

— A verdade, que fomos a cidade.

Silêncio. Clara me encarava:

— Vamos Daniel, prossiga!

— Ele expressou em um delicioso sermão sua preocupação com a sua segurança, – olhei para as várias estantes de livros que se espalhavam pela biblioteca. – Disse que suas habilidades medicinais são de suma importância para sobrevivência das pessoas desse lugar. – Clara sentou-se de forma ereta na cadeira.

— É bom ser reconhecida às vezes!

Bufei e voltei a encarar os livros. Lembrei-me do objeto na mesa do Capitão, já o tinha visto em algum lugar. E o que significariam aquelas letras? Estava com minha mente trabalhando a todo vapor nesse dilema quando as mãos quentes e macias de Clara acariciaram meu rosto me puxando para a realidade:

— No que estava pensando? – perguntou sussurrando.

— Vi um objeto sobre a mesa do capitão, uma haste de prata com algumas gravuras. Sinto que já a vi em algum lugar. Talvez não seja nada, as coisas andam bem tumultuadas por aqui... E também não tenho dormido direito. – sussurrei o final.

— Por causa dos sonhos? – olhei incrédulo para ela.

— Como sabe disso?

— Eu o observava todas as noites enquanto estava na enfermaria. – Clara deu um meio sorriso. - Conte para mim.

Mesmo se eu quisesse esconder dela não seria mais capaz, Clara parecia ter a chave que abre a porta para meu interior, contei a ela. Contei sobre o sonho, sobre a porta, sobre as vozes, os gritos, os choros e sobre a correnteza me empurrando. Clara ouviu tudo com um silêncio e uma atenção sacra:

— Você passou por muita coisa, precisa descansar. Tente dormir um pouco, vai se sentir melhor.

— Isto é prescrição médica?

— Sim! – respondeu Clara sorrindo.

Seguindo as ordens de Clara me recolhi bem cedo após o jantar.

Dormi, como não dormia há dias. Acordei próximo ao horário do almoço com as forças totalmente recarregadas. Almocei com os meninos, ouvindo o falatório de Jorge e as piadas de Phillip. Terminado o almoço fui até Clara, na companhia de quem passei o restante do dia, hora na enfermaria, hora nos campos, hora passeando e muitas e muitas horas na biblioteca pois Clara gostava de estar entre os livros. Lia de tudo com avido interesse, lia em francês, italiano, alemão, inglês. O idioma não lhe era uma barreira.

Me recolhi novamente após o jantar, mas dessa vez não tive a graça de uma boa noite de sono. Mal fechei os olhos e já fui levado novamente para aquele corredor, para aquela porta, para aquelas vozes e novamente fui impelido para escuridão por aquela correnteza.

Acordei incendiado por um desejo de esclarecimento, queria saber o que tinha atrás daquela maldita porta, queria saber porque continuava a sonhar com ela. Me levantei no escuro e caminhei até a porta, estava girando a maçaneta quando um sussurro ecoou atrás de mim:

— Daniel, aonde você vai? – perguntou Phillip.

— Tenho algo a fazer. – respondi

— A essa hora, o que seria?

— Algo perigoso.

— Deixe-me ajuda-lo!

— É melhor não Phillip.

— Meu amigo você não tem muitas opções, ou me deixa ir com você ou vou acordar todo o navio. – disse o garoto com um sorriso maléfico.

— Seu pequeno diabo!

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