9: Bolos de mentiras

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⎯⎯ Oi, Richard. ⎯⎯ falei, demonstrando o mínimo possível da minha raiva. Cada segundo daquela noite me vinha à mente como um enxame de abelhas extremamente insistentes, e isso me fazia querer socar a cara daquele homem. Mas, mesmo que não estivéssemos no meio de uma sala de visitas de uma prisão, não sei se teria coragem de machucar aquele que me acompanhou a vida toda, mesmo que o filho da puta tivesse machucado minha mãe. E isso me dava mais raiva, o suficiente para esquecer de falar algo além de "Oi, Richard".

⎯⎯ Richard? É, acho que mereço. Um pai não teria batido em seus filhos daquele jeito, não é mesmo? ⎯⎯ falou, recostando-se na cadeira metálica. Olhava para mim como se tentando descobrir o porquê de eu ter ido visitá-lo. ⎯⎯ Não esperava que alguém viesse me ver. O julgamento não é só quinta?

⎯⎯ Não vim falar sobre o que rolou lá em casa. ⎯⎯ decidi dizer logo. Ele pareceu surpreso. ⎯⎯ Quero fazer umas perguntas rápidas sobre a época em que morava no prédio da Glória Maldita.

⎯⎯ No prédio de quem?

⎯⎯ Aquele que pegou fogo.

⎯⎯ Ah, o Romenia Palace. Nossa, faz tanto tempo... eu havia acabado de me mudar de lá quando soube do incêndio. Mas por que tá interessado naquelas ruínas?

⎯⎯ Preciso saber sobre a moradora acusada de começar o incêndio. Você sabe...

⎯⎯ Glória. Eu lembro. Morávamos em lados opostos do prédio, eu nunca falei com ela, não sei nada sobre... Espera, é só pra isso que veio aqui? Mais nada?

⎯⎯ Olha, eu não tô nem aí pro motivo merda que te levou a espancar sua família.

⎯⎯ Então ela não te contou.

⎯⎯ M- me contou? Não me contou o quê?

Richard ficou ereto, jogou os braços sobre a mesa e olhou no fundo dos meus olhos. Meu pai não era feio. Tinha um queixo quadrado, sobrancelhas grossas e bem aparadas, cabelos negros lisos com partes grisalhas além de um tom de pele bronzeado. No auge dos quarenta anos, sua fisionomia não era das piores e seus olhos eram negros. Porém sua expressão facial de dar inveja nos pais da nossa rua estava enrugada naquela momento, fora todos os outros sinais de... choro? Ele havia chorado?

⎯⎯ Nick... ⎯⎯ Suspirou ele.

⎯⎯ Nicolas. ⎯⎯ corrigi, entredentes.

⎯⎯ Nicolas... eu sei que não quer saber de nada que tenha motivado um beberrão como eu a agir com tanta violência. Além disso, passei boa parte da sua vida exigindo demais de você e sendo um babaca, então não há por que acreditar em qualquer coisa que eu diga. Mesmo assim, pode confirmar com sua mãe. Pergunte a ela o motivo da nossa briga.

⎯⎯ E por que eu deveria fazer qualquer coisa que você peça? Por que deveria fazer isso?

⎯⎯ Por que Melanie não é sua irmã.

Naquele momento a mulher ali do lado pareceu paralisar-se, assim como os guardas que rondavam. O próprio tempo parecia ter parado enquanto eu tentava assimilar aquelas palavras que nunca fizeram e nunca achei que poderiam sequer chegar a fazer sentido para mim. Do que Richard estava falando? Estaria mentindo para me enlouquecer? Mas de que isso adiantaria para ele?

⎯⎯ E muito menos minha filha. ⎯⎯ continuou. ⎯⎯ Na época em que estávamos namorando, nove meses antes de Melie nascer, Mary estava me traindo com outro.

⎯⎯ Mentira...

⎯⎯ Ele a engravidou, ela me disse que teríamos um bebê e, como o trouxa que sou, acreditei que era nosso. Nos casamos um tempo depois, prontos para ter aquele bastardo.

⎯⎯ Pare de mentir...

⎯⎯ Só descobri tudo por que Mary guarda uma caixa com antigas cartas trocadas com esse outro homem dentro da mala roxa. E uma delas, escrito por ela mesma...

⎯⎯ Mentir pra mim...

⎯⎯ Mas nunca enviada, contava tudo ao outro. Que tiveram um filho de sua traição de merda.

⎯⎯ PARE DE MENTIR PRA MIM!

Todos ao redor olharam para a nossa mesa, espantados como se um filho houvesse acabado de gritar com o pai. Até os guardas fitavam-nos como se se perguntado: "quem deixou esse moleque entrar?".

⎯⎯ Nicolas, acalme-se. ⎯⎯ pediu Richard. ⎯⎯ Sente-se.

⎯⎯ Me acalmar? Me acalmar? ⎯⎯ vociferei, fazendo esforço para não gritar. ⎯⎯ Você bateu na minha mãe, na minha irmã, em mim e agora fica inventando essas mentiras! Acha mesmo que eu acreditaria nessa merda toda que tá saindo da sua boca? Você torturou a minha família por anos, aqui é o lugar ideal pra gente como você, que não se arrepende nem mesmo quando já tá na merda. Gente que não merece perdão.

⎯⎯ Tem razão. ⎯⎯ falou Richard, depois de um silêncio quase infinito. Um silêncio longo o suficiente para a mulher ao lado terminar sua seção pornô privado. Richard não me olhava nos olhos, apenas fitava a mancha de café na mesa. ⎯⎯ Não mereço nada de bom ou justo. Mereço apodrecer nesse monte de desespero e tristeza, sem nem saber o meu próprio nome. Mas você não, Nicolas. Você merece a verdade. Se não acredita em mim, veja por si mesmo. O homem com quem sua mãe me traía, você precisa saber o nome dele. Seu nome é... ABAIXE!

Tudo aconteceu em questão de segundos. A mesa ao lado explodiu, levando duas pessoas próximas, um guarda e o próprio homem que se via ali sentado antes de virar um pedaço de carne queimada. Eu só não fui atingido por que Richard me jogou para o lado, fora do alcance da explosão.

Rapidamente a sala de visitas virou um caos. Os visitantes tentavam sair por onde entraram enquanto os guardas tinham que impedir que os presos escapassem pelo mesmo caminho. Isso tudo numa atmosfera de pura pirotecnia, com os alarmes de incêndio berrando, gritos de dor e medo, e os dispositivos anti incêndio fazendo chover dentro daquele cubículo.

⎯⎯ Nick, saia daqui! ⎯⎯ Escutei, mas parecia distante. Um zunido fazia minha cabeça girar e ver o mundo ao meu redor sem foco. Só depois de vários segundos é que fui perceber que quem me mandava embora era o meu pai. ⎯⎯ Levanta, vai embora daqui, agora!

Levantei no momento em que dois guardas se aproximavam para levar Richard. Olhei para frente e vi dois outros segurando e espancando um garoto negro que não parecia ser um presidiário. Antes que eu pudesse sequer começar a correr, meu nome sendo chamado me fez virar e ver meu pai com as mãos atrás da cabeça. Ele olhava diretamente para mim e estava encharcado de água.

⎯⎯ Na noite em que o prédio pegou fogo, o Circo estava na cidade. ⎯⎯ disse, respirando pesadamente. ⎯⎯ Eu sinto muito por tudo de ruim que fiz pra você. ⎯⎯ Então foi imobilizado pelos dois seguranças armados.

Disparei para a porta. Porém, por algum motivo que não compreendo até hoje, desviei e acertei um dos guardas que segurava o garoto negro. Este aproveitou a oportunidade e desferiu um soco no outro, fazendo-se completamente livre. Juntos corremos para fora daquele inferno.

Por incrível que pareça, o lado de fora estava pior. Carros de polícia e homens armados, pareciam prontos como se o próprio El Chapo estivesse tentando escapar do presídio. Driblamos todos que conseguimos e escapamos para o mais longe possível. Felizmente o garoto que ajudei também estava de bicicleta.

Só paramos quando não ouvíamos mais o som estridente dos alarmes, e a corrida rendeu bastante suor de nós dois.

⎯⎯ Que porra foi aquela? ⎯⎯ Tossiu o garoto, descendo de sua bicicleta. Sua voz estava rouca, provavelmente pela fumaça da explosão ou pelos socos dos guardas.

⎯⎯ A mulher de blusa vermelha. ⎯⎯ Lembrei, encostando-me num container de lixo e tentando lembrar como se respira. ⎯⎯ Ela levou um bolo pro homem que foi visitar. Mas não comeram. E ela foi a última a sair antes da explosão.

⎯⎯ Quero nem saber o que aquele cara fez pra ser explodido daquele jeito.

⎯⎯ Muito menos eu.

⎯⎯ Bem, obrigado por me salvar, Nick. A culpa é sempre do cara negro pra esses filhos da puta.

⎯⎯ É só Nicolas...

Fui perceber só quando era tarde demais e um soco no estômago me jogava no chão. Até o momento eu não efetivamente olhara no rosto de quem eu havia ajudado, e talvez tivesse pensado duas vezes antes de fazê-lo. Deitado e encolhido, vi Ray Santos assomando-se sobre mim com os punhos cerrados. Um chute me fez sentir algo se quebrando dentro do meu corpo, mais ou menos na região das costelas, o que me fez ver estrelas e sangue. Acho que era o meu, sendo espirrado da minha boca.

Ray me arrastou pela perna, levantou-me e jogou dentro do container de lixo. Sem conseguir nem ao menos me mover, fiquei apenas vendo ele fechar a tampa e falar, antes de ir embora:

⎯⎯ Não saia daí. Quando eu voltar, você vai me contar tudo o que sabe sobre o sumiço da Sam.

Passei os próximos minutos tentando criar forças para levantar a tampa, nas era mais pesada do que eu pensava, isso subtraindo-se a minha força, que reduzira-se como se um carro houvesse me acertado no abdômen. E daí que você não conseguiu impedir um homem de quarenta anos bêbado e puto da vida? Eu deveria corrigir Lucas se o encontrasse de novo. Eu não conseguia nem levantar a porra de uma tampa do container de lixo!

As palavras do meu pai flutuavam na minha mente quando ouvi passos do lado de fora. Queria pedir ajuda, mas temia que pudesse ser Ray.

"Que burrice." Pensei, lacrimejando. "É claro que é o Ray. Quem mais sabe que eu tô aqui?'

Preparei-me para mais uma surra quando a luz do dia me alcançou. Então gemi de alívio ao ver uma garota no lado de fora.

⎯⎯ Quem fez isso? ⎯⎯ questionou Lilith, me ajudando a sair. ⎯⎯ Ei, idiota, quem fez isso com você?

Mas eu não respondi. Apenas manquei até minha bicicleta, apoiei-me nela e voltei à estrada.

⎯⎯ Tá indo aonde? Nick, fala alguma coisa! Merda, me dê a bicicleta e eu te levo até o hospital. Não? Pra onde quer ir, porra? Quê? O que tem na sua casa de tão importante? Ah, vai ficar calado até eu te levar lá. Ótimo. Sobe logo então.

Levamos bem menos tempo na volta do que na minha ida. Lilith podia receber uma multa por velocidade, mas os poucos que conseguiam nos ver ficavam mais interessados no porquê de uma bicicleta estar sequestrando um garoto.

Não tive tempo de responder às perguntas da garota demônio quando paramos em frente à minha casa. A casa na qual vivi a vida inteira, bem ao lado da minha irmã. Melanie era minha irmã. Richard estava mentindo, só para me machucar uma última vez. Ele havia mentido para se vingar. Tinha que ser isso.

Subi as escadas, não avistei minha mãe. Entrei em seu quarto, um cômodo com banheiro que abrigava uma cômoda, uma cama de casal e um abajuor, além da decoração bem minimalista, como o tapete roxo encardido, fotos emolduradas da família e o monte de roupas sujas penduradas no cabide. Abri o guarda-roupas dentro da parede e vasculhei com os olhos cada canto, até achar a superfície púrpura da mala, a mesma que Melie havia levado em sua viagem a Roma.

Melanie. Como ela reagiria se tudo isso fosse verdade? Mas não era. Não havia a menor possibilidade de aquilo ser verdade.

⎯⎯ Não... ⎯⎯ Caí de joelhos, olhando para o interior da mala. ⎯⎯ Não tem nada.

Meu coração poderia ter parado de tanto alívio. Mas, antes que isso pudesse acontecer, uma ponta minúscula e desgasta do plástico que preenchia a parede interna da mala soltou-se. Mary estava me traindo com outro. Quando fui recolocar, senti um leve volume. Puxei então a ponta e uma espécie de bolso secreto abriu. Um fundo falso. Ela me disse que teríamos um bebê.

Praguejei. Ali estavam vários papéis com selos e envelopes. Cartas. Prontos para ter aquele bastardo.

⎯⎯ Não... ⎯⎯ Pensei ter dito, mas minha boca não havia se movido. Então olhei para trás, de onde a voz viera. Minha mãe olhava para as cartas como se fossem serpentes venenosas. ⎯⎯ Nicolas...


Várias poças se formavam no chão devido as goteiras. A chuva estava voraz como a correnteza de um rio e eu podia enxergar várias infiltrações aqui e ali no interior da minha galeria. Meu Anjo Negro repousava em sua parede, ao lado da obra que eu estava fitando.

Esta eu chamava "A Travessia". Há cerca de um ano havia chovido o suficiente para alagar as ruas. Dois dálmatas, talvez irmãos, se viam de lados opostos de um córrego que transbordara. Tudo parecia perdido, até um deles saltar na direção do outro. Infelizmente a correnteza estava forte, e o primeiro a pular foi levado. De repente, o segundo também mergulhou, nadando até seu companheiro. Juntos, conseguiram escapar das garras da correnteza.

Achei inspirador. Pintei. Muito preto, branco, cinza, azul e marron. As cores do medo, da paz, da estabilidade, da tranquilidade e da seriedade, respectivamente. Uma mistura de coisas formando uma torrente enlameada, que eu peguei e transformei em arte. Uma situação de desespero que transformei em beleza.

Estava difícil de fazer isso agora. Não conseguia ver beleza em lugar nenhum. Só mentiras. Eu precisava que alguém pulasse para me salvar, mas estava mentindo para a única pessoa em quem eu confiava.

⎯⎯ Não o matarei quando encontrá-lo, juro! ⎯⎯ implorava Lilith. Ela passara a última hora tentando me convencer a contar quem havia me jogado na caçamba de lixo. Aquilo já estava me dando nos nervos. ⎯⎯ Nick, qual é! Sabe quais são as chances de um demônio se oferecer para dar um surra no valentão que te persegue? Você deveria aproveitar melhor as oportunidades que a vida te dá.

A imagem de Ray Santos, ensanguentado e todo quebrado, fez meu estômago se revirar. Senti raiva, não da imagem, mas daquela pontada quase imperceptível de satisfação que me fez sentir. Eu queria uma vingança. E por que não? Ninguém desconfiaria se Lilith...

⎯⎯ Ninguém perceberia. Você só teria a ganhar. ⎯⎯ resmungou ela.

⎯⎯ Pare. ⎯⎯ falei.

⎯⎯ O quê?

⎯⎯ Com esse seu lance de demônio de influenciar as minhas ações. Controle mental, jedi, sei lá. Não é por que eu tô com o psicológico fodido que você tem o direito de brincar com ele.

Estranhei o silêncio seguinte, mas não estava me importando com os sentimentos de um demônio no momento. É, admito que posso ter sido cruel...

⎯⎯ Lance de demônio? É sério isso? ⎯⎯ Ecoou sua voz, enfim. Ouvi suas botas de couro pisando no chão ao descer do sofá e caminharem para longe. – Ela não deixa de ser sua irmã, sabe disso né? Não precisa agir como um idiota ainda.

⎯⎯ Lilith, espera... ⎯⎯ Tentei, mas ela rumou para fora da galeria, as botas pisando com bastante raiva. ⎯⎯ Parabéns, Warren.

Não a escutei mais. Meus ferimentos latejavam. O silêncio deu lugar às lembranças da minha visita à prisão. Cartas trocadas com esse outro homem dentro da mala roxa. Prontos para ter aquele bastardo. O circo estava na cidade.

Meus olhos fitaram os do dálmata que pulara primeiro. Na noite em que o prédio pegou fogo, o circo estava na cidade. Foi o que Richard falou. Lucas tinha dito que o Parque de Diversões Epopeia, que estava chegando na cidade nesse exato momento, aparecia há cada três anos. Acompanhado de um circo.

⎯⎯ Um circo. ⎯⎯ Falei, mesmo estando completamente só. ⎯⎯ Tinha que ser um circo.

𝕯𝖊𝖒𝖔𝖓𝖘 𝕱𝖆𝖑𝖑Onde histórias criam vida. Descubra agora