5: Crianças não devem brincar com fogo

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Ainda estava atordoado demais com a menina para notar que ela havia sido a única, até agora, que havia visto Lilith, além de mim.

⎯⎯ Nick, sai daqui. ⎯⎯ disse a garota demônio no meu lado, se posicionando como um soldado bem treinado.

⎯⎯ Ele está chateado com você, Lilith. ⎯⎯ falou a menininha, abaixando e pegando o instrumento de cerrar ensanguentado do chão. ⎯⎯ Por que você o deixou sozinho. Me deixa triste ver outros como eu.

Tentei caminhar silenciosamente de volta para o andar de baixo, mas quando olhei para a escada, incontáveis insetos negros, de bilhões de pernas e um sincronismo assustador, formavam uma parede letal. Caldas de escorpião e presas de aranha se despontavam dali, como uma ameaça silenciosa: não ouse.

⎯⎯ Quando eu te matar ⎯⎯ disse a menininha. Mais insetos começaram a surgir de todos os buracos visíveis e invisíveis, vindo em minha direção. ⎯⎯ Ele vai parar de chorar.

Tive que me abaixar para não ter a cabeça decepada. No momento em que a menininha parou de falar, cada vidro da sala se espatifou e voou, como se atingidos pela pressão de uma explosão.

⎯⎯ É mesmo? ⎯⎯ Escutei Lilith falar. Ela não havia movido um músculo sequer. ⎯⎯ Nossa, você fala demais. Eu já estava quase esquecendo como Poltergeists são chatos. Nunca encontrei algum que soubesse causar uma boa desordem de verdade. ⎯⎯ Ela esticou o braço diagonalmente, formando um ângulo de sessenta em relação ao corpo. Seus dedos começaram a soltar brasas como se fossem feitos de madeira e estivessem começando a queimar. ⎯⎯ Nona Bolgia: Badblood.

As brasas saltaram de sua mão e se juntaram, tomando uma forma comprida. Quando desapareceram, tudo o que restava era uma bela espada vermelha, no formato de agulha, com o material metálico da guarda se contorcendo graciosamente para assumir o formato de uma rosa. No cabo, em letras índico arábicas, se via escrito: Badblood, mas desapareceu quando Lilith segurou-o, assumindo posição de esgrimista em direção ao que ela havia chamado de Poltergeist.

⎯⎯ Nick? ⎯⎯ chamou ela. ⎯⎯ Acho que já disse pra dar o fora daqui.

⎯⎯ As escadas tão bloqueadas. ⎯⎯ falei, olhando para elas. Meu sangue gelou quando vi o que vi: à minha frente, os insetos se reuniram para criar uma figura humanoide e negra, de quatro braços e mãos em garras, que me olhava como se lembrasse de todos as criaturinhas menores que eu já matara na minha vida. ⎯⎯ É, vou dar o fora daqui.

Uma vez, na aula de história, a professora passou um filme que deveríamos ver e fazer um resumo. O filme era sobre a Segunda Guerra Mundial, a respeito de um médico alistado que não queria usar armas de jeito nenhum (acho que o cara ainda não havia visto os nazistas). Em todo caso, no dia em que ele finalmente foi a campo, com certeza sentiu falta de uma espingarda. Ele corria desesperadamente de um lado para o outro, com coisas explodindo ao redor dele como se, a qualquer momento, quem fosse explodir fosse ele.

Naquele momento, fugindo do monstro de insetos e com Lilith enfrentando o tal Polterseiláoquê, eu me sentia como esse soldado. Buracos e obstáculos surgiam à minha frente, e toda vez que eu olhava para trás o monstro de insetos parecia estar chegando mais perto. De repente, uma parede ou porta explodia, e Lilith surgia por alguns segundos, para depois sumir dentro de outro cômodo. Se eu fosse observar o teto, certeza que o veria quase caindo, mas eu estava ocupado demais tentando ficar vivo.

Quase escorreguei numa curva que fiz para entrar num corredor lateral. Então rapidamente entrei num quarto, fechando a porta de madeira apodrecida. Por cima do som das batidas do meu coração, escutei os milhões de passos passando direto, a toda velocidade, e se distanciando.

⎯⎯ Droga. ⎯⎯ praguejei, fechando os olhos com força e desejando, mais que tudo, que aquilo fosse um pesadelo. Quando os abri, uma enorme cratera surgia como se pronta para me engolir, bem no centro do cômodo onde eu estava. O andar de baixo estava escuro demais para que eu pudesse identificar qualquer coisa.

Eu estava encurralado.

De repente, um estrondo abalou a estrutura e um projétil abriu um buraco na parede da direita, cortando o ar e acertando-me em cheio, derrubando-me com tudo no chão.

⎯⎯ Ai. ⎯⎯ dissemos ao mesmo tempo.

Lilith havia caído bem em cima de mim, os cabelos sobre o meu rosto, e eu provavelmente caíra em cima de uma cadeira, pois sentia algo em baixo das minhas costelas. Só não sabia se era isso ou um osso quebrado.

Ela levantou o corpo, ainda sobre mim, e nos entreolhamos por um momento constrangedor. Então ela esticou o braço até meu rosto, mas não o tocou. Pegou uma espécie de barbante e levou até o cabelo, começando a amarrá-lo num rabo-de-cavalo.

⎯⎯ Este Poltergeist é diferente dos outros. ⎯⎯ falou. ⎯⎯ Está quase no nível de um demônio. Tem alguma coisa errada com ele.

⎯⎯ Como assim? ⎯⎯ indaguei, pensando firmemente em coisas entediantes.

⎯⎯ Poltergeists geralmente assombram pessoas ou famílias. Então onde está a pessoa ou a família que ele está assombrando? Se ele foi convencido a vir aqui, tem que ter algo a ver com isso. Precisamos pará-lo antes que conclua... seja lá o que estava fazendo.

⎯⎯ Você consegue?

⎯⎯ É claro que consigo. Mas não acho que ele saiba que você é o meu totem, então não posso ficar demonstrando que preciso te proteger, ou ele vai perceber e vai mudar de alvo.

⎯⎯ Então o que eu faço?

De repente, a porta pela qual entrei explodiu e uma figura escura entrou furiosamente no cômodo. Tão rápido que meus olhos quase não enxergaram, Lilith empunhou sua espada, ficando de pé, girou e desferiu um corte potente o suficiente para matar boa parte dos insetos e dispersar o resto. A lâmina rubra soltava pequenos filetes de vapor, como se estivesse ameaçando entrar em combustão.

⎯⎯ Ele não vai deixar ninguém descer. ⎯⎯ respondeu Lilith. ⎯⎯ Então vamos subir.

Antes que eu pudesse dizer ou fazer qualquer coisa, ela jogou meu braço sobre seu ombro, agachou e deu um impulso para cima bem na hora em que o resto da parede da direita desmoronou, revelando a garotinha Poltergeist.

Atravessamos o teto com tudo, mas não o atingimos, despencando no andar superior. Eu despenquei, pelo menos, quase sem fôlego. Lilith caiu em pé como um esquilo, olhando ao redor. Era como se tivéssemos sido, por uns segundos, intangíveis.

⎯⎯ Não posso usar muito do meu poder aqui. ⎯⎯ falou. ⎯⎯ O espaço é pequeno demais.

⎯⎯ O terraço! ⎯⎯ falei.

⎯⎯ Boa ideia.

Quando o Poltergeist descobriu por onde havíamos fugido, já estávamos a caminho das escadas. Seu urro furioso fez as paredes tremerem.

⎯⎯ Vai. Nos encontramos lá. ⎯⎯ disse Lilith, empurrando-me na direção dos degraus. Então se virou para o corredor, mirou o brilho fantasmagórico, que se aproximava velozmente, e falou: ⎯⎯ Décima Bolgia: Nuvem de Doenças.

A demônio abriu a boca, mais do que achei ser possível, e uma nuvem negra de moscas explodiu para fora, inundando o corredor à frente.

Não fiquei para ver se funcionou. Subi aquelas escadas como se um pitbull estivesse atrás de mim. Só parei para tomar fôlego quando, finalmente, consegui avistar a porta de metal à minha frente, contornada pelo brilho fraco de um dia acabando. Escancarei-a, levando alguns segundos para me adaptar novamente à claridade. O sol lançava sua luz laranja sobre o horizonte e as nuvens, deixando-as cor-de-rosa. As luzes noturnas da cidade já se acendiam, como mil olhos cintilantes, e a lua surgia no céu, minúscula e sorrindo da minha situação desesperadora.

Acima da porta, uma lâmpada apagada se via conectada com um gerador velho, abandonado bem ali do lado. Apesar da ferrugem, não parecia totalmente não funcional. Olhei para o chão e uma ideia brotou como uma espinha: quando vi, já estava ali.

⎯⎯ Oi.

⎯⎯ Caralho! Lilith? De onde você surgiu?

⎯⎯ Pulei os degraus.

⎯⎯ Todos?

⎯⎯ Claro. Quem é o trouxa que sobe degrau por degrau numa situação como essa, Nick?

⎯⎯ Mimimimin. Escuta: eu tenho um plano. Mas precisamos de água.

Procuramos pelo terraço o mais rápido possível até acharmos um latão de aço com água da chuva. Virei-o e derramei o líquido sujo e contaminado, que se espalhou pelo chão em frente a porta. Foi quando senti um tremor seguido do barulho do Poltergeist chegando, irritado como minha irmã quando está com fome.

⎯⎯ Fique atrás de mim, Nick. ⎯⎯ falou Lilith, depois de pôr o gerador sobre a água e ligá-lo. Posicionou-se alguns metros de frente para a porta, de costas e próximo ao parapeito. Não discuti.

O barulho foi ficando mais alto e o tremor poderia chegar, fácil, à escala 7 de Richter. Podia sentir que o prédio não suportaria aquela batalha por muito mais tempo. Ou acabávamos a luta ali e naquele momento ou não haveria mais luta. A porta de metal, que havíamos fechado, parecia querer se soltar das dobradiças. Uma forte iluminação azul acinzentado emanava dela, ficando mais e mais forte, até chegar ao nível ofuscante.

De repente, a porta explodiu junto com a estrutura quadrada na qual estava encaixada. A visão do gerador voando para longe, inofensivo, gelou minha espinha, acabando com o meu plano de eletrocutar nosso perseguidor. Pedaços de concreto voaram, e uma figura repleta de iluminação fosforescente surgiu: a menininha, ainda de costas, mas que agora brilhava em azul acinzentado e voava uns dois metros acima do chão. Percebi que suas roupas estavam bem rasgadas, assim como seu cabelo, apesar de Lilith não aparentar ter nenhum arranhão.

⎯⎯ Sua fama não é em vão, Lilith do Inferno. ⎯⎯ falou o Poltergeist, parecendo não perceber a mosca que saiu de sua orelha esquerda. ⎯⎯ Mas, ainda sim, não vai me derrotar. ⎯⎯ Os pedaços de concreto que voaram começam a retornar, girando em torno da menininha como um tornado particular e afiado, pronto para dilacerar qualquer tolo que se aproximasse demais. ⎯⎯ Azazel me concedeu uma fração de seu poder, mais do que suficiente para acabar com qualquer um que eu queira! Quem você acha que é para tentar impedir minha vingança?

⎯⎯ Oitava Bolgia ⎯⎯ Escutei Lilith dizer, enquanto o ar ficava com um cheiro de chuva. ⎯⎯, Tempestade de Raios.

Linhas azuis de eletricidade começaram a dançar na mão esquerda da garota, cauterizando as mangas de sua jaqueta de couro. Seus cabelos ficarem em pé, conduzidos pela eletricidade estática. Ela então moveu a mão em um arco, como se lançando uma carta ou bola de tênis, e as linhas de eletricidade se espalharam, atingindo o chão e o ar, movendo-se na velocidade de um relâmpago até o piso embaixo do Poltergeist. A eletricidade se espalhando pelas moléculas de H2O formava um verdadeiro espetáculo, que alastrou-se e criou o que eu não posso descrever como outra coisa, senão uma prisão azul elétrico. No centro, a menininha fantasma gritando de dor, um berro que eu podia jurar que poderia ser escutado por toda a região.
Até que cessou. A prisão azul elétrica, junto com os gritos. O corpo da menininha não brilhava mais. Ela caiu sobre a água, inerte.

⎯⎯ Ela... nós...? ⎯⎯ gaguejei, caminhando com cuidado até nosso fantasminha nada camarada. Dei um pulo quando um resquício de eletricidade se desprendeu da figura espectral. ⎯⎯ Droga!

⎯⎯ Relaxa. ⎯⎯ disse Lilith. ⎯⎯ Ele não está mais com ela.

⎯⎯ Quem? O Poltergeist? Mas... ela é o Poltergeist.

⎯⎯ Ela, não. ⎯⎯ Corrigiu a garota, se dirigindo até a garotinha caída. ⎯⎯ Poltergeists assombram uma família ou uma pessoa, lembra? ⎯⎯ Lilith se agachou e afastou o cabelo do rosto da menininha, revelando uma face tão doce que parecia ser feita de porcelana. Não havia nada de perigoso ou psicopata nela. ⎯⎯ Aqui está a pessoa assombrada. Nesse caso, a alma.

⎯⎯ Mas... achei que só fizessem isso com pessoas vivas. ⎯⎯ argumentei, me aproximando também.

⎯⎯ E, normalmente, fazem. Por isso eu disse que esse era diferente dos outros. Havia uma força com ele, um poder demoníaco, que o permitiu ir além dos seus limites.

⎯⎯ Ele havia falado... uma fração do poder do pastel ou algo assim. Parecia achar que você reconheceria o tal poder.

⎯⎯ Azazel. Um dos Príncipes do Inferno. O Demônio da Ira.

⎯⎯ Isso! Vocês se conhecem?

⎯⎯ O Poltergeist se aproveitou dos sentimentos negativos desta criança, sussurrando em seu ouvido e concedendo-lhe poder. No final, motivados pela ira, eles se tornaram um. Estaríamos ferrados se eu não tivesse agido rápido.

⎯⎯ Vingança. ⎯⎯ Lembrei, com o fato de ela ter ignorado minha pergunta ainda cutucando meu cérebro. ⎯⎯ Ela disse que queria vingança. De quem uma criancinha iria querer se vingar? Olha: ela tá acordando!

Ela abriu lentamente seus olhos, olhou em volta como se despertando de um sono profundo, sentou-se e então focalizou-os em nós, parecendo esforçar-se para nos reconhecer.

⎯⎯ O que... aconteceu? ⎯⎯ indagou. Sua voz era calma, infantil e calorosa. Bem diferente do que eu havia presenciado antes. ⎯⎯ Onde estou?

⎯⎯ No terraço do prédio. A Lilith meio que te eletrocutou. ⎯⎯ respondi, sentindo uma cotovelada no ombro. ⎯⎯ Eu sou Nicolas. Qual o seu nome?

⎯⎯ L... Lin.

⎯⎯ Muito prazer. Você se lembra de alguma coisa?

⎯⎯ Eu... O homem de cabelo laranja, ele... me fez buscar aquelas pessoas no salão da piscina. ⎯⎯ Ela falava. Parecia que, a qualquer momento, desabaria em choro e soluços. ⎯⎯ Ele me disse que ajudaria a achar a minha mãe, mas eu tinha que fazer uma coisa pra ele. Eu... não lembro o que era...

⎯⎯ A fogueira. ⎯⎯ sussurrou Lilith, baixo o bastante para que apenas eu pudesse escutar.

De repente, a garotinha olhou, vidrada, para o vazio. Então se levantou e foi até a escada, descendo-a como se houvesse esquecido que estávamos ali. Já que, na verdade, nós estávamos ali, a seguimos.

Encontramos ela em frente a fogueira do segundo andar, que, de alguma maneira, começara a se apagar. As chamas já se viam do tamanho das de uma churrasqueira profissional, permitindo-nos enxergar o grande pentagrama vermelho no centro, o que me tirou o fôlego.

⎯⎯ Ele me disse que, se eu fizesse essas coisas, me levaria até minha mãe e me ajudaria a... ⎯⎯ Dessa vez, o que quer que ela fosse dizer, foi interrompido pelos soluços angustiados.

⎯⎯ Como... se chama a sua mãe? ⎯⎯ indaguei.

⎯⎯ G- Glória.

Um frio percorreu minha espinha, ao mesmo tempo que meu coração apertou. A lembrança de uma boato sobre uma bruxa retornou à minha mente. Mas as lendas nunca disseram que Glória Maldita tinha uma filha. Teriam ambas morrido no incêndio? Glória teria o causado mesmo sabendo que a filha morreria?

Foi então que percebi as marcas estranhas no pescoço da menininha fantasma. A pele estava repuxada, esticada de um jeito estranho. Algo não estava batendo, algo cutucava minha curiosidade. Olhei para Lin, prostrada, em prantos, de frente a fogueira, pedindo tantas desculpas quanto era possível. Uma imagem totalmente oposta à daquela figura assassina e letal que nos seguiu pelo prédio arruinado.

⎯⎯ Vamos te ajudar. ⎯⎯ falei.

⎯⎯ Quê?! ⎯⎯ Lilith parecia ter levado um soco no estômago. ⎯⎯ Nem pensar. As almas têm que achar seu próprio caminho pro além.

⎯⎯ Ela é só uma criança!

⎯⎯ Problema dela. Além disso, fantasmas mantêm a aparência exata do momento em que morreram. Nem sabemos se ela ainda é uma criança. Não vou perder meu tempo com isso.

⎯⎯ Tá bom, então. ⎯⎯ Eu disse, depois de ponderar alguns segundos. ⎯⎯ Eu ajudarei ela. Sozinho.

⎯⎯ V- verdade? ⎯⎯ Alegrou-se Lin. Ela levantou, virou-se para mim, sorriu e tentou me abraçar. Mas em vez disso passou através de mim (o que, aliás, foi uma sensação horrível). Então ela afastou-se e suas bochechas brilharam, o que eu entendi como sendo o equivalente a corar para os fantasmas. ⎯⎯ Eu... obrigada, senhor...?

⎯⎯ Nicolas. Errr... só Nicolas.

⎯⎯ Obrigada, Nicolas-sama. ⎯⎯ Ela reverenciou, o que me deixou totalmente sem jeito. ⎯⎯ Em agradecimento, limparei toda essa bagunça.

⎯⎯ N- não precisa, Lin. Não foi sua culpa...

⎯⎯ Tudo bem. Eu acho que... parte de mim estava acordada enquanto eu fazia todas aquelas coisas ruins. Acho que limpar tudo pode me fazer sentir um pouco melhor.

Sem mais demorar, Lin saiu saltitando, talvez para pegar um esfregão ou coisa parecida. Acho que, se eu fosse o fantasma de uma criança que acabara de queimar corpos numa fogueira satânica inconscientemente, tentaria fazer qualquer coisa que não fosse... bem, fazer tudo outra vez. E falando em fogueira satânica...

⎯⎯ Parece que ela estava fazendo uma espécie de ritual. ⎯⎯ comentei, observando Lilith agachada perto do pentagrama como se analisando-o ou... recordando? ⎯⎯ Se ela tinha o poder desse tal de Azazel, estava invocando ele? ⎯⎯ Lilith não respondeu. ⎯⎯ Era ele o cara que estava "sozinho"? Você o conhece, Lilith? Por que não me responde?

Ela apenas permaneceu calada, olhando para os últimos resquícios das chamas. Algumas brasas dançavam entre as mãos da garota demoníaca. Decidi não perguntar. Seja lá qual fosse a relação entre ela e esse Azazel, se era algo que deixava um demônio tenso, quem eu era para tentar ser empático?

⎯⎯ Então tá. Eu vou... ver se a polícia ou os bombeiros já chegaram. ⎯⎯ falei, com as mãos nos bolsos e saindo de costas da sala. ⎯⎯ Quem sabe eu consiga convencê-los de que foi uma gangue de rua que... fez todo esse barulho.

Cheguei a minha galeria exatamente quando o som de chuva me chamou a atenção. Eu não havia percebido antes. As gotas faziam um barulho constante no vidro das claraboias e o ambiente estava mais escuro, devido as nuvens cinzentas no céu e o pôr do sol. Várias poças no chão surgiam de infiltrações e goteiras, tornando impossível andar sem pisar em uma.

⎯⎯ Eu não fazia ideia do quanto você progrediu aqui. ⎯⎯ Escutei, de repente.

Só não dei um pulo ou saí correndo por que aquela voz não tinha a capacidade de me assustar.

⎯⎯ Melanie? ⎯⎯ falei, olhando para o fundo do cômodo. Do outro lado da piscina, meio escondida nas sombras, minha irmã mais velha admirava a parede mais recente. Ela vestia calças jeans, uma blusa quadriculada verde-escuro, de mangas compridas, e estava com os cabelos soltos. Em uma mão, segurava dois guarda-chuvas. ⎯⎯ Quando você chegou?

⎯⎯ Não tem nem um minuto. Eu... achei que você ia querer um guarda-chuva. Fez esse há pouco tempo? ⎯⎯ Ela esticou o braço vagarosamente, como se quisesse sentir as penas do anjo. Percebi que, em baixo do braço, carregava seu caderno azul.

Aproximei-me, olhando para aquela figura negra envolvida em luz, e então para Melanie, que aparentava estar em transe. Seus olhos analisavam cada detalhe, com a perícia da mulher que me ensinou a grafitar. Apesar disso, outra expressão se via pintada em seu rosto, algo que eu não conseguia reconhecer.

⎯⎯ Ontem mesmo. ⎯⎯ respondi. ⎯⎯ E aquele foi na semana passada. E aquele outro, com o Pantera Negra, foi mês passado. Triste o lance do ator...

⎯⎯ Desculpa.

⎯⎯ O quê?

⎯⎯ Eu... ⎯⎯ Ela olhou para baixo e abraçou a si mesma, com um pouco de melancolia. ⎯⎯ Te deixei sozinho, aqui. Larguei você com o papai e a mamãe, nessa droga de cidade, na sua condição. E, mesmo enquanto eu estou aqui, ainda não consigo ajudar meu irmãozinho... Acho que sou um fracasso como irmã mais velha.

⎯⎯ Melie, eu não... Eu não te culpo por nada disso. E você também não deveria. Você foi pra longe pra fazer algo importante, lutar pelos seus sonhos. Você ganhou uma oportunidade por seu próprio mérito. Deveria estar orgulhosa de não ter feito tanta merda como eu.

⎯⎯ Não, Nick. ⎯⎯ Ela inspirou de forma barulhenta. Então virou o rosto para mim, revelando o lado que antes estava fora do alcance da minha visão: ali, uma lágrima solitária escorria. ⎯⎯ Eu fiz merda, baixinho. Eu ferrei tudo.

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