15: Rubro e prata

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Foi a primeira vez que eu percebi o quanto era inútil. De um lado, a minha irmã, do outro, um demônio. A decisão deveria ser fácil. Mas "fácil" nunca foi uma palavra muito presente no meu dia a dia.

⎯⎯ Espero que tenha alguém te esperando lá do outro lado. ⎯⎯ escarneceu Melanie, movendo o braço numa estocada livre de erros.

⎯⎯ Não! ⎯⎯ gritei, tarde demais. A lâmina atravessou a garota demônio. Mesmo que não estivéssemos mais ligados, pude sentir a dor, que fez minhas pálpebras se apertarem.

O xingamento de Melanie chamou a minha atenção. Abri os olhos de novo e vi um líquido negro escorrendo da ponta da espada. Piche pingava no chão e formava uma poça, exatamente onde antes estava Lilith. Então, como numa privada, o negrume começou a sumir para dentro de um buraco no chão que eu não havia notado até aquele exato segundo.

⎯⎯ Shelman, tire o Nicolas daqui! ⎯⎯ ordenou minha irmã.

⎯⎯ Melie, você não tá entendendo. ⎯⎯ falei, mesmo com o professor me puxando. ⎯⎯ Ela não é o que você tá pensando.

⎯⎯ Vão! Agora!

Eu nem mesmo havia posto um pé para o lado de fora da sala quando uma explosão jogou-nos contra o corredor adjacente. Momentos antes de Shelman fechar a porta, consegui avistar a silhueta negra de Lilith saindo de uma cratera em chamas no chão. Sua roupa fumegava e seus olhos brilhavam em um alaranjado furioso.

⎯⎯ Droga, o feitiço deveria bloquear a invocação de bolgias. ⎯⎯ praguejou Shelman, empurrando-me escada acima. ⎯⎯ Melanie demorou demais.

⎯⎯ Professor Shelman, me escuta! ⎯⎯ falei, depois de chegar ao final da escadaria e a uma sala cheia de estantes, onde se viam dezenas de bíblias de todos os tamanhos além de recortes de jornal, alguns com imagens de padres e objetos diferentes. ⎯⎯ Estão cometendo um erro, você sabe!

⎯⎯ Nicolas, aquilo lá embaixo é um demônio. Você tem noção do que ela já fez? Das pessoas que sofreram, que morreram por causa dela?

⎯⎯ Ela não te matou quando teve a chance.

O homem me fitou, sem palavras.

BUMM! Mais uma explosão. Não vinha do andar de baixo, mas sim do outro lado da porta de mogno para a qual eu olhava.

⎯⎯ Cuidado! ⎯⎯ Escutei alguém gritar, mas não entendi quem fora até que Shelman me puxou para o lado. Um segundo depois algo atravessou a porta e se chocou contra a parede da escadaria de onde viemos.

"Melie!" Pensei num reflexo, voltando o olhar para o projétil humano caído.

Ou melhor: projétil.

Em vez de Melanie, Lilith se via sentada no topo da escada, com sangue escorrendo do canto da boca. Ela é quem havia sido arremessada.

⎯⎯ Patético. ⎯⎯ disse a minha irmã, parada no lugar onde já existiu uma bela porta negra, com sua espada radiante apontada para a garota demônio.

Nem meio segundo foi usado para que Badblood fosse invocada. Nem meio segundo foi necessário para as espadas se colidirem. Rubro e prata, o som do impacto vibrando os meus tímpanos e me deixando tonto. À minha frente, as duas forçavam as lâminas uma contra a outra, mas, de alguma maneira, se equiparavam em questão de força.

⎯⎯ Por que está se contendo? ⎯⎯ indagaram os lábios de Melanie.

⎯⎯ E você? ⎯⎯ rebateram os de Lilith. ⎯⎯ Ou isso foi tudo o que te ensinaram?

Antes que eu pudesse entender o que a expressão furiosa da minha irmã queria dizer, Shelman literalmente arrancou-me do torpor e nos guiou porta fora. A sala de consultas do psicólogo não existia mais. No lugar havia apenas uma cratera carbonizada que dava para o porão, onde outro buraco enorme queimava em labaredas laranjas e lançava no ambiente um cheiro pútrido de pneu queimado e esgoto.

Dirigimo-nos para a saída, há cinco metros de nós, quando senti os cabelos da minha nuca se eriçarem. Nem precisei do aviso de Shelman para me jogar no chão e proteger a cabeça.

⎯⎯ Tempestade de Fogo e Raios! ⎯⎯ Pude imaginar ela dizendo, pouco antes de liberar uma explosão mista de chamas e eletricidade. Não foi o suficiente para nos atingir, mas levantou uma densa nuvem de poeira e detonou a nossa rota de fuga.

Tossindo, surdo e confuso, tateei em volta a procura do professor. Encontrei-o olhando para as paredes, que portavam rachaduras longas e aumentando.

A casa estava desmoronando!

⎯⎯ Pra cima! ⎯⎯ Tentei gritar, sem ouvir a minha própria voz. Não sei se ele me escutou, mas logo disparou rumo a escada. O segui, tentando não afundar nos buracos do piso e na certeza de que Melanie não poderia ter sobrevivido àquele ataque a queima roupa.

Rachaduras se alastravam também pelo chão do segundo andar e pedaços consideráveis faltavam. Toda e qualquer louça ou móvel que não era de madeira estava em cacos, espalhados por toda parte. Shelman correu até a janela lateral, da qual só restavam pedaços afiados de vidro. De repente algo abalou a estrutura, como a força de impacto de dois carros em alta velocidade colidindo um contra o outro.

⎯⎯ Melanie ainda tá viva... ⎯⎯ balbuciei, olhando para trás.

⎯⎯ Não se preocupe com ela, garoto. Ela sabe se virar. ⎯⎯ falou Shelman numa voz longínqua e quase imperceptível. Minha audição parecia estar voltando aos poucos. ⎯⎯ Nós é que estamos em perigo aqui. Vamos!

Quase escorreguei num solavanco ocasional mas, por fim, consegui descer pela lateral do prédio, caindo num beco sujo e escuro. No céu noturno, nuvens negras tapavam a visão das estrelas.

Ignorando o fato de eu ter ficado preso por um dia inteiro, corri para o meio da rua, apenas desejando chegar em casa e abraçar a minha mãe. Mas parei. Não era como se eu conseguisse deixar Melanie para trás, não importava o que quer que Shelman achava sobre seu potencial.

⎯⎯ Nicolas, o que tá fazendo? Vamos embora, garoto! ⎯⎯ gritava Shelman, por cima dos estrondos da batalha.

Subitamente uma imagem veio à minha mente, e tudo virou de cabeça para baixo. As engrenagens na minha cabeça finalmente começaram a girar para o lado certo. Lilith quem havia sido presa, arremessada para fora do porão, rebaixada em nível de força e, mesmo com seu ataque mais poderoso, não tinha conseguido parar minha irmã.

Lilith quem estava em perigo, não Melanie.

Meu devaneio foi interrompido por uma explosão. Não vou falar que foi mais uma por que essa foi a maior de todas, fazendo a terra tremer. À minha frente, as pessoas corriam assustadas para longe, muitas ainda de pijama. Às minhas costas, fogo e concreto se misturavam num monumento espetacular e aterrorizante ao mesmo tempo, lançando nuvens de fumaça para o céu. Então um CRACK se fez ouvir e o próprio ar pareceu respirar fundo.

O edifício começou a despencar. Mais uma vez, Shelman me jogou para o chão a fim de evitar uma decapitação indesejada, e por vários minutos tudo o que pude ver foi escuridão, enquanto a nuvem de escombros passava por mim. Foi como ser atingido por um tsunami feito de areia e pedra e com certeza deixou alguns arranhões de lembrança. Quando finalmente pude me levantar, ainda assim não enxergava nada além do nevoeiro de sujeira. Enquanto tossia, tentei distinguir as poucas formas ao meu redor: um encolhido Shelman à direita, um pedaço de geladeira à esquerda, uma fraca luz branca à frente parecida com a luz emanada da espada de...

⎯⎯ Melanie!

Corri naquela direção, desviando com esforço dos destroços. O que encontrei foi uma cena que fez meu coração quase parar. Os cabelos antes quase brancos de Lilith estavam vermelhos de sangue, cobrindo seu rosto enquanto a própria se via caída e inerte.

⎯⎯ Afaste-se! ⎯⎯ Escutei. Melanie aproximava-se a passos lentos. Líquido arterial saía dos incontáveis cortes em sua roupa e rosto, e a espada parecia pesar muito mais do que antes. Mesmo assim, ela mantinha um ar de controle e dominância. ⎯⎯ Eu vou resolver tudo. Vou acabar com isso agora mesmo. Isso já se prolongou por tempo demais. Eu vou... Nick? O que tá fazendo? Saia da frente! Eu mandei o maldito Shelman tirá-lo daqui!

⎯⎯ Não! ⎯⎯ falei, enterrando a sola dos sapatos na terra. Ergui os braços, formando uma barreira entre Melanie e Lilith. ⎯⎯ Você não vai mais tocar nela!

⎯⎯ Do quê tá falando? Você quer dizer... A influência dela não deveria o estar afetando mais, eu cortei a conexão!

⎯⎯ Não tem nada a ver com a conexão.

⎯⎯ Como pode? Como pode se importar com isso? É um ser pecador que não teve perdão e nunca terá. Não importa o que ela tenha mostrado a você, ela escolheu o pecado, há muito tempo, e sempre estará amaldiçoada por isso. É isso o que você quer defender?

Olhei tristemente para a garota demônio.

⎯⎯ Não é como se fôssemos muito melhores. ⎯⎯ respondi. ⎯⎯ Como um pecador pode ter o direito de julgar outro? Se alguém faz escolhas ruins, então que as consequências de suas ações o levem. Se alguém decide se matar, então que a própria morte o carregue. Se é preciso que os outros sofram para que seja feito o que é certo, então não é certo. Melie, já chega de sangue. Abaixa essa espada. É o seu irmão quem está pedindo.

Por um momento, percebendo a dúvida em seu olhar, achei mesmo que ela desistiria. Mas esse segundo passou e a Melanie fria e calculista ergueu a espada novamente.

⎯⎯ Não sabe o que tá dizendo. ⎯⎯ disse. ⎯⎯ Agora, saia da frente. Posso te derrubar facilmente sem ter que te machucar muito.

⎯⎯ Eu sei. ⎯⎯ admiti. Então me abaixei e peguei um caco grande de vidro do chão. ⎯⎯ Mas acontece que eu posso. Se você machucá-la, também vai me machucar. Se matá-la, eu morro junto.

Melanie vacilou no momento em que eu aproximei o caco da minha aorta. Sua boca tremeu, mas nenhuma palavra saiu. Seus olhos se arregalaram, mas não desviaram de seu alvo demoníaco. Minha irmã sempre sabe quando estou falando sério.

⎯⎯ Não... ⎯⎯ Surgiu o sussurro, acompanhado de algo puxando o tecido da minha calça. Olhei para baixo e ali estava Lilith, de joelhos. Não parecia estar fazendo muito esforço para se manter erguida, mas também não parecia capaz de ficar de pé. ⎯⎯ Não faz isso, idiota.

⎯⎯ Tudo o que você sente eu sinto. ⎯⎯ falei, com mais convicção do que eu achava que era capaz. Na verdade, eu estava falando exatamente o que pensava, pela primeira vez. ⎯⎯ Então, se você morrer, eu morro também. É melhor ir se acostumando.

Não escutei resposta. Apenas senti o aperto na minha calça cessar e não estava com coragem para desviar o olhar de Melanie, que voltara a apontar a espada para nós.

⎯⎯ Você não... Você... ⎯⎯ gaguejava, nada dominante. ⎯⎯ Não sabe o tá fazendo. Eu só tô tentando ajudar... Resolver tudo...

⎯⎯ A única coisa que há para ser resolvida agora, mestre, é o fato de continuar apontando sua espada para uma criança. ⎯⎯ disse Shelman, do meio do nevoeiro de poeira. Junto a ele sua pistola emergiu, mirando diretamente para a minha irmã. ⎯⎯ Ei, demônio! Pouco antes de partir, Lin olhou para você como se estivesse agradecendo. Você ajudou ela enquanto eu não estava, assim como o Nicolas, não foi?

Mesmo que Lilith não tenha se manifestado, Shelman entendeu e assentiu, voltando a ordenar que Melanie abaixasse a arma. Dez segundos de silêncio se estenderam pelo que pareceu uma eternidade. Em nenhum momento Melanie deu a menor dica de que desistiria, por isso me surpreendi quando suspirou e embainhou a espada radiante em uma bainha invisível. Imediatamente a luz sumiu, deixando-nos no breu.

⎯⎯ Não é como se eu tivesse escolha, mesmo. ⎯⎯ murmurou a minha irmã, a silhueta se misturando nas sombras. ⎯⎯ É melhor que sumam daqui antes que a polícia chegue. Vamos nos ver de novo, Lilith. Eu prometo.

⎯⎯ Polícia? ⎯⎯ indaguei. ⎯⎯ Melanie? Melanie!

Mas ela já havia sumido. Não demorou para ouvirmos o som de várias sirenes se aproximando.

⎯⎯ Vamos para a minha casa. ⎯⎯ falei, levantando Lilith sobre os ombros. ⎯⎯ Podemos nos esconder lá até a poeira passar. Literalmente. Você pode ficar até encontrar um novo lugar para morar, sr. Shelman.

⎯⎯ Não, jovem. ⎯⎯ disse ele, balançando a cabeça. ⎯⎯ Alguém tem que ficar para assumir as consequências.

⎯⎯ Mas... você não...

⎯⎯ Se alguém faz escolhas ruins, então que as consequências de suas ações o levem. Sabe, eu sofri a punição pelos meus crimes perante Deus. Eu acho, pelo menos. Mas nunca perante os homens. Já está mais do que na hora. Continue gentil, jovem Nick. Ops, quero dizer... Nicolas.

⎯⎯ Tudo bem.

O professor sorriu, assim como sempre sorria para seus alunos quando entrava em sala para dar mais uma de suas espetaculares aulas.

⎯⎯ Vá. ⎯⎯ finalizou, virando-se na direção das sirenes.

Segurei Lilith com firmeza e disparei noite adentro.

𝕯𝖊𝖒𝖔𝖓𝖘 𝕱𝖆𝖑𝖑Onde histórias criam vida. Descubra agora