7: Os vivos vingam os mortos

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Suas mãos apertavam cada vez mais a gola do meu moletom e meus pés nem encostavam mais no chão. A prateleira atrás de mim parecia prestes a quebrar perante a pressão que meu corpo fazia, empurrado pela força absurda de Ray.

Eu o havia reconhecido pela voz, mesmo antes de olhar para seu rosto. Era o garoto que acompanhara Samantha para o lado e para o outro o ano letivo inteiro e o mesmo que me caçava, junto a ela, no dia em que a valentona da escola morreu.

Aparentemente, era pela própria Samantha que ele perguntava (ou berrava, na ocasião). Infelizmente eu não conseguia falar, tamanha a surpresa de ter um garoto mais velho prestes a me esmurrar, se não eu teria contado toda a sangrenta história para ele.

⎯⎯ O gato comeu a sua língua? ⎯⎯ indagou ele, suando como um porco. Seus olhos estavam agitados e suas pupilas, dilatadas. Estava drogado. ⎯⎯ Por que, se não comeu, deixa que eu corto ela fora. OU você pode me contar AONDE ESTÁ A SAM!

Com o canto do olho enxerguei Maria encolhida num canto, olhando para a cena como uma criança vê seu pai batendo em sua mãe. Tremia e abraçava seus livros, abaixando a cabeça, exatamente como fazia no Fundamental. Pensei em implorar por sua ajuda, mas senti uma pontada no coração ao me lembrar por que ela não conseguiria, mesmo que quisesse.

⎯⎯ Ela... ⎯⎯ Foi questão de segundos. No milésimo em que eu abriria a boca, uma mão surgiu no ombro de Ray, puxando-o com tudo para trás e para longe de mim.

De repente eu estava vendo meu professor de filosofia aplicando uma chave de braço no garoto negro, que agitava os membros tentando acertar tudo o que conseguisse.

⎯⎯ Se acalma, Santos. Escuta: acalme-se! ⎯⎯ O sr. Shelman falava, firmemente.

⎯⎯ Argh, me larga! ⎯⎯ rugia Ray. ⎯⎯ Já tô calmo, porra. Já tô calmo.

Num empurrão controlado, o sr. Shelman soltou o garoto, que parou antes de cair sobre uma mesa. Este olhou para o professor, depois para mim e lançou um último olhar ameaçador para Maria, que se encolheu mais ainda. Depois disso, foi embora, quase arrancando fora a porta de vidro da biblioteca.

Olhei em volta e as pessoas olharam de volta para mim como se eu fosse portador de alguma doença recém descoberta. Minha próxima ação seria sair correndo, pois o peso de tantos olhares e o barulho das fichas caindo pareciam correntes prestes a me apertar até não poder mais. Porém, antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, o sr. Shelman dirigiu-se a mim, passando a mão no rosto:

⎯⎯ Pegue suas coisas e me siga. Rápido!

Acompanhei o sr. Shelman até sua sala: um cômodo aconchegante e bem iluminado, com duas estantes cheias de livros e uma ou duas estatuetas, além de uma caixa solitária de madeira. Nas paredes, quadros surrealistas e pôsteres com frases motivacionais. Sobre a mesa, porta-canetas, cadernos, mais livros e um envelope laranja se viam milimetricamente organizados. Na verdade, a saleta inteira estava tão limpa quanto um banheiro de consultório médico.

O sr. Shelman pegou uma garrafa d'água no frigobar e entregou a mim, dizendo para que eu sentasse. Fiz o que ele disse, engolindo goles substanciais. Aos poucos, meu coração foi voltando ao ritmo normal.

⎯⎯ As coisas não estão muito legais pra você, rapaz. ⎯⎯ comentou o professor.

⎯⎯ É, deu pra ver. ⎯⎯ respondi, lembrando da expressão furiosa de Ray Santos.

⎯⎯ Não estou falando do Santos. Devo supor que não tem se atualizado. O sumiço da Samantha Jackson causou um rebuliço na família do prefeito, apesar de ele estar fazendo de tudo pra abafar o caso o máximo de tempo possível. Toda a polícia local está ativa. Ouvi dizer que você, como teve aquele pequeno desentendimento com o irmão dela, está entre os suspeitos de saber o que aconteceu com ela.

⎯⎯ Eu? Mas por que logo eu seria suspeito de algo que aconteceu com ela?

⎯⎯ Alguém deve ter contado que ela estava atrás de você, provavelmente para vingar o irmão, quando sumiu. É claro, não quer dizer que você tenha relação com tudo isso, mas aconselho que fique atento. Não me surpreenderia se encontrasse com algum investigador qualquer dia desses.

⎯⎯ Que merda, e isso agora? Espera, por que está me contando essas coisas, sr. Shelman?

Ele sorriu de forma acolhedora e apoiou a mão em meu ombro, dizendo:

⎯⎯ Por que gosto de você, Nicolas. E me preocupo com meus alunos. Além do mais, sei que nada disso é culpa sua.

"Eu queria ter tanta certeza quando você." Pensei, com um gosto amargo na boca.

Escutei uma batida na porta e o professor foi atender. Senti como se não visse Lucas há séculos e, pelo jeito como me abraçou, ele sentia o mesmo.

⎯⎯ Amigo, você tá bem? ⎯⎯ Ele me revistou como se eu estivesse escondendo qualquer machucado não permitido pela lei. ⎯⎯ Primeiro a tinta e depois isso... Nicolas, você tá com um carma bem pesado.

⎯⎯ Olá, Lucas. ⎯⎯ perguntou o sr. Shelman. ⎯⎯ De que "tinta" está falando?

⎯⎯ Err... escorreguei numa poça de tinta um dia desses. ⎯⎯ acrescentei imediatamente, empurrando Lucas para fora da sala antes que ele pudesse falar qualquer outra coisa. ⎯⎯ Obrigado pela água, professor.

⎯⎯ Disponha, Nicolas. E tome cuidado.

É claro que Lucas, enquanto caminhávamos para longe da sala do psicólogo, perguntou por que eu não havia contado ao sr. Shelman sobre a tinta no meu armário.

⎯⎯ Se fosse eu teria feito um escândalo. ⎯⎯ comentou meu melhor amigo. Naquele dia ele usava uma blusa tye-dye bem chamativa e tinha pintado o cabelo de loiro. Com certeza tentava impressionar algum crush. Eu só não sabia qual dessa vez.

⎯⎯ Não quero meter um professor nisso. ⎯⎯ falei. ⎯⎯ Só quero que a poeira baixe logo.

⎯⎯ E o episódio na biblioteca é a prova de que está quase nesse ponto, né?

⎯⎯ Isso não é problema seu, tá bom?

Lucas tinha parado há uns três metros de mim quando eu percebi o que tinha falado. Parei e virei-me, pedindo desculpas.

⎯⎯ É que... a escola, a Samantha, meus pais... eu não tô sabendo lidar.

⎯⎯ O que houve com os seus...?

⎯⎯ Aí, bixinha! É proibido namorar nos corredores. ⎯⎯ Falou um garoto que passava com os amigos jogadores de futebol, que riram. Ele trombou no ombro de Lucas e seguiu em frente como se nada houvesse acontecido.

Olhei para eles sentindo minha mão coçar. Estava sentindo vontade de socar alguém o dia todo, quem sabe? Mas me obriguei a lembrar que um soco já havia sido suficiente para causar um caos na minha vida.

⎯⎯ Vamos pra um lugar menos público. ⎯⎯ aconselhou Lucas, suspirando.

⎯⎯ Não se cansa deles? ⎯⎯ falei, seguindo-o.

⎯⎯ Não tem muito o que eu possa fazer. Aonde vou, tem alguém assim. Não dá pra fugir de mim mesmo.

Acabamos na parte de trás da escola, perto das latas de lixo. Fedia? Sim. Mas não havia ninguém ali além de nós.

⎯⎯ Vai, conta tudo. ⎯⎯ mandou Lucas, sentando-se sobre a lata de lixo maior. Rapidamente ele desceu, com uma cara de nojo e limpando as mãos na calça.

Meu melhor amigo ouviu pacientemente a minha história. Sua expressão mudava há cada reviravolta, e se fechou quando contei sobre o tapa que levei.

⎯⎯ Eu não fui capaz, Lucas. Eu... não consegui nem me mover, muito menos proteger minha família. ⎯⎯ lamentei, olhando para o carvalho sem folhas a fim de esconder as minhas lágrimas. ⎯⎯ Merda, não faria a menor diferença se eu não existisse.

Lucas não falou por uns dois minutos, o que para mim pareceu uma eternidade. Quando enfim disse alguma coisa, foi com a voz cheia de emoção:

⎯⎯ Tem que parar com isso, Nicolas. Faria diferença sim. Para mais gente do que você pensa. Sua irmã não para de falar de você para a minha, sua mãe não teria ninguém para ficar perto dela e... porra, cara, você deu um soco em Jackson Willians!

⎯⎯ Foi uma péssima ideia.

⎯⎯ Mesmo assim, nunca houve alguém capaz disso na história do colégio. Tem muita gente que precisa de você. Eu preciso. Você é o meu... melhor amigo. E daí que não foi capaz de conter um homem de quarenta anos bêbado e puto da vida? Não quer dizer que não faria diferença se você não existisse. Não quer dizer que, caso algo acontecesse com você ⎯⎯ Me surpreendi quando ele tocou o braço do meu moletom e descobriu meu pulso, revelando as marcas carmesim na minha pele. ⎯⎯ ninguém sentiria falta. Então seria bom começar a se ligar naqueles que se importam com você, em vez de só naqueles que te odeiam.

O sinal tocou. Envergonhado, escondi meu pulso e me dirigi de volta ao prédio. Lucas me parou com um toque no ombro, dizendo:

⎯⎯ Eu sei que tem essa coisa toda do Jackson, mas você tem estado sumido. Vamos dar um rolê juntos quando aquele parque chegar na cidade?

⎯⎯ Que parque? ⎯⎯ indaguei.

⎯⎯ Não assiste televisão, garoto? Esqueci o nome agora, mas vai ser uma ótima distração pra gente. O trabalho na organização do acampamento tá me dando nos nervos.

⎯⎯ Ei, não sai andando assim!

Esperei até todos que ainda me procuravam saírem pela porta da frente, então foi a minha vez quando senti que não havia mais perigo. Imediatamente avistei-a, sentada num banco do outro lado da rua e de frente para a escola: meu estorvo pessoal. Sob a sombra de uma árvore, ela segurava alguma coisa e usava óculos escuros. Apesar de ser totalmente egocêntrico... ela ficava muito melhor que eu de óculos escuros.

⎯⎯ Senti uma leve perturbação hoje. ⎯⎯ disse Lilith, aproveitando seu sorvete vermelho.

⎯⎯ Só uma briga na biblioteca. ⎯⎯ falei.

⎯⎯ Você tá horrível.

⎯⎯ Devia ver como ficou o outro cara. Me conta, você ficou o dia todo aí esperando eu sair da escola?

⎯⎯ É claro que não, mané. Eu tenho coisas melhores pra fazer. Cheguei há pouco.

⎯⎯ Esse sorvete é de quê?

⎯⎯ Acredite: você não quer saber a resposta pra essa pergunta.

Olhei para o material estranho daquela bola e notei que Lilith estava certa. Então simplesmente me virei para caminhar de volta à minha casa, quando lembrei do porquê de ter ido à biblioteca.

Tirei a mochila das costas, busquei e achei o livro escrito por C. Willians. Em sua capa, o título parecia reluzir ao sol, como se tivesse sentido saudades do ar livre. Abri e o folheei. Infelizmente foi tudo o que pude fazer, pois cada página se via marcada, de cima a baixo, por tracejados esquisitos, como letra de médico, só que um pouco mais compreensível. Xinguei, jogando o livro sobre o banco de Lilith, em desistência.

⎯⎯ Não maltrate um livro só por que ele não tem gravuras, Nick. ⎯⎯ aconselhou a garota demoníaca, fazendo barulho ao morder a casquinha do sorvete.

⎯⎯ Todo esse trabalho e ainda pego um livro que não consigo ler.

⎯⎯ Oh, existe algum que você consiga?

⎯⎯ Não é hora pra isso, Lilith.

Ela pegou calmamente o livro de capa roxa, ergueu até onde podia ver, e imediatamente parou de devorar a casquinha de sorvete. Sua expressão mudou completamente, e agora parecia curiosa. Tirou os óculos escuros, engoliu o que sobrara de seu lanche, e pegou a obra de C. Willians com as duas mãos, folheando.

⎯⎯ O que foi? ⎯⎯ indaguei.

⎯⎯ Essa escrita... é parecida com a de um livro que li. ⎯⎯ respondeu Lilith. ⎯⎯ Quem é esse "C. Willians"?

⎯⎯ Você consegue ler?

⎯⎯ Claro, mas...

⎯⎯ Ah, que legal! Então pode achar a parte que fala sobre como apaziguar o espírito de uma garotinha em busca da mãe.

⎯⎯ Já falei que não tô a fim de ajudar nessa chatice.

⎯⎯ Agora a senhorita já está no meio da trama. Não me diz que não quer ler esse livro? Viu? Quer sim. Vai, dá uma força, demônio de bolso!

⎯⎯ Da próxima vez que me chamar assim, amarro o cadarço dos seus sapatos no seu pênis.

⎯⎯ Não falo mais isso contanto que me ajude. Basta achar a página certa e me dizer o que é preciso fazer.

Lilith suspirou, fechou os olhos e então acenou com a cabeça. Já voltara a folhear o livro, quando senti um toque no meu ombro. Atrás de mim estava Maria Di Angelo, com uma expressão agitada. Quase esqueci de usar sinais de mão tamanha a surpresa.

⎯⎯ Você tá bem? Não te achei depois...

⎯⎯ Você precisa sair daqui! ⎯⎯ avisou ela, mas suas mãos tremiam demais e ela sinalizava mais rápido do que minha mente conseguia computar. Desistindo de tentar explicar, Maria apenas segurou minha mão e me puxou para longe de Lilith, que assistia a cena como se assistindo alguém colocando o sorvete embaixo e a casquinha em cima.

Sem saber se Lilith nos acompanhava, segui a garota ruiva, bem ciente do primeiro contato físico entre nós desde o Ensino Fundamental. Avançamos por ruas e mais ruas até a escola sumir completamente de vista. Mas só uma quadra depois, já perto da minha casa, Maria parou, talvez assumindo que estávamos seguros. Porém restava a dúvida: de que nós estávamos fugindo?

⎯⎯ Agora que me fez correr quase meio quilômetro, pode me dizer o que foi isso? – indaguei a Maria.

⎯⎯ Ray estava atrás de você. Ele se escondeu nos arredores da escola pra não ser preso e poder te pegar.

⎯⎯ Você... correu esse risco todo...?

⎯⎯ Agora estamos quites. Você sabe, pelo Jackson. ⎯⎯ Maria deu de ombros.

⎯⎯ Nós dois sabemos que te devo muito mais.

A garota desviou o olhar, mas eu já estava no meio do caminho.

⎯⎯ Foi a maior surpresa quando eu soube que estudaríamos juntos de novo. Tentei por muito tempo encontrar coragem pra falar contigo, pra poder pelo menos pedir desculpas...

⎯⎯ Não quero falar disso.

A frase, mesmo dita em libras, baixou a temperatura do ambiente a zero absoluto. Eu não soube mais o que dizer.

⎯⎯ Toma mais cuidado quando for salvar garotas sofrendo bullying de agora em diante, ok? Te vejo na escola. ⎯⎯ Foram seus últimos gestos antes de me deixar naquele dia.

⎯⎯ É, ela te abandonou. ⎯⎯ Dei um pulo quando Lilith se materializou ali ao lado.

⎯⎯ Achei que não conseguisse ficar invisível pra mim. ⎯⎯ falei, recuperando o fôlego. ⎯⎯ Como faz essa coisa de aparecer do nada?

⎯⎯ É que você é bem lerdo. Pelo visto, com a maioria das garotas também. Eu poderia dar um jeito nesse tal de Ray pra você, mas nããããão.

⎯⎯ Você só quer proteger o seu rostinho bonito do soco de um valentão.

⎯⎯ Você acha o meu rostinho bonito, Nick? – Zoou Lilith, fazendo biquinho.

⎯⎯ A questão é: sem mais mortes. Aliás, e o livro? Conseguiu alguma coisa?

⎯⎯ Não preciso do livro, bobão. Eu sei como apaziguar os espíritos. Eu sou um deles.

⎯⎯ Então por quê aceitou ler o livro em vez de me dizer logo o que fazer?

⎯⎯ Faz eras que não via nem pistas do Livro de Soyga. O verdadeiro sumiu há tanto tempo... mas a pessoa que escreveu essas crônicas teve contato com as Línguas Antigas, na qual o livro foi escrito. Se eu puder achar essa pessoa...

⎯⎯ Mas... ele já morreu.

⎯⎯ Lin também.

De repente a temperatura baixou mais ainda. As folhas das árvores começaram a farfalhar, e uma brisa atingiu-me, trazendo um fedor de esgoto. Coincidentemente, olhei para a tampa do boeiro mais próxima, que começou a tremer, tremer mais e tremer mais, até que parecia dançar. Quando eu já começava a suar frio, uma voz se fez ouvir:

⎯⎯ Alguém falou de mim? ⎯⎯ A garotinha saiu do bueiro em forma de fumaça branca, para então tomar forma humana.

⎯⎯ Lin, não faz isso! ⎯⎯ falei, metade furioso metade aliviado. ⎯⎯ Já basta a Lilith. Antes que eu me esqueça, pode dizer logo como ajudar a Lin?

⎯⎯ Achando quem a matou. ⎯⎯ respondeu a garota demoníaca.

𝕯𝖊𝖒𝖔𝖓𝖘 𝕱𝖆𝖑𝖑Onde histórias criam vida. Descubra agora