Capítulo 2 - O Reencontro

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SEIS MESES ANTES

[Sol]

Olho para o meu telemóvel para ver as horas e tento me manter acordada. Trabalhei toda a noite servindo bebidas, dançando, colocando música e motivando os clientes, o que me rendeu olheiras bem pronunciadas. Agora que finalmente parei, não me aguento de pé. Fiz dois turnos diários no último mês para conseguir sobreviver nos últimos meses deste ano. Tenho bolsa de estudos, mas não é suficiente para sobreviver numa grande cidade como Ária. As aulas do segundo semestre recomeçaram hoje e só me restam seis meses para terminar o 4.º ano do curso.

Estou sentada na última fila de um pequeno anfiteatro da faculdade. Mantenho os olhos no meu caderno de apontamentos em branco e questiono-me como vou sobreviver a esta aula. Necessito de dormir! Ouço o burburinho cessar, sinal de que o professor entrou na sala. Mesmo de rastos, levanto a cabeça e todo o meu corpo reage tensamente àquilo que vejo. Três anos e meio parecem retroceder num momento e, à minha frente, sou prendada com uma imagem da minha vida anterior. Impossível! Foi a primeira palavra que cruzou a minha mente. Involuntariamente, numa tentativa absurda de me esconder, baixo a cabeça. Durante um curto espaço de tempo nem sei se vi bem, mas quando retorno o olhar, aqueles olhos azuis penetrantes estão fixos na minha direção. Sentadas, à minha frente, duas raparigas conversam num tom baixo. Não escondem o seu entusiasmo ao olhar para o professor e babam para aqueles músculos pronunciados sobre a camisa branca.

Conheço-as desde o primeiro ano que frequento a FMA, embora nunca tenhamos trocado uma palavra sequer. Não sou o tipo de rapariga com quem elas quereriam ter uma amizade. Não importa. Não tenho o objetivo de fazer amigos mesmo. Quero terminar o curso de medicina rápido e ir à minha vida. Quando cá cheguei, duas semanas antes do início das aulas do meu primeiro ano, não tinha propriamente nada planeado, nem sequer sítio para ficar. Era a minha primeira vez numa cidade grande e também a primeira vez em que estava inteiramente por minha conta. Confesso que pensei que seria tudo diferente. Achava que o dinheiro da bolsa daria para mais e que finalmente viveria sobre as minhas regras e teria a minha tão sonhada liberdade, mas, infelizmente, não contei que tudo isso vinha com um preço. Nas primeiras noites, aluguei uma cama num hostel e decidi arranjar trabalho. Rapidamente, compreendi que, para sobreviver num local como Ária, necessitava muito mais do que o dinheiro que trouxera na mochila e, além disso, que teria de fazer muita ginástica para conciliar o horário de trabalho com o horário dos estudos. Sinceramente, acho que foi neste momento que comecei finalmente a crescer e a perceber que a liberdade que eu tanto desejava exigia muito trabalho e esforço da minha parte.

No fim de um dia complicado e quase desistindo de procurar, entrei numa pastelaria. Pedi um café e dirigi-me para uma mesa perto da janela. Necessitava de uma ideia brilhante e rápido, se não teria de regressar a casa nos dias seguintes. À minha frente, numa outra mesa, uma rapariga mais ou menos da minha idade saboreava uma gigante fatia de bolo coberta de chantili e morangos. Devo ter ficado muito tempo a olhar para o bolo porque ela olhou diretamente para mim e começou a falar comigo.

- Tudo bem? - Olhei para trás para me certificar se era mesmo comigo que ela estava a falar. Não havia ninguém atrás de mim.

- Está mais ou menos. - respondi. Na verdade, o que eu queria responder era "quando saí de casa sem olhar para trás... meio a fugir dos meus traumas, meio imersa na vergonha e na culpa, eu pensei que seria mais fácil". Continuei. - Necessito de um trabalho. Conheces algum local que possa empregar uma rapariga, que nunca fez nada na vida, durante as tardes e noites? E, já agora, um sítio para morar que não seja necessário vender um rim? - ri na tentativa de tornar a situação um pouco mais engraçada.

- Talvez... - ela respondeu-me. - Nova na cidade, então. À procura da oportunidade certa?

- Vim para cá estudar, mas primeiro preciso de algo tão banal como... sobreviver. - ironizei.

Imperfeitamente PerfeitosOnde histórias criam vida. Descubra agora