CINCO ANOS ANTES
[Sol]
Ainda está escuro, embora o amanhecer ameace tragar a noite a qualquer momento, ou talvez seja eu que estou com medo. Antes que todos despertem, retiro o edredão quente de cima de mim e levanto-me em silêncio. Se eu não agir rapidamente, dificilmente descobrirei aquilo que pretendo.
Caminho descalça pelo corredor de madeira escura na direção da sala das artes, um dos locais favoritos da minha mãe. Na verdade, é uma espécie de escritório com paredes adornadas com todo o tipo de arte antiga e contemporânea. A casa está silenciosa e escura, o que, de algum modo, me assusta. Apresso o passo e caminho o mais depressa que consigo. Parece-me ouvir um som atrás de mim, nervosa olho para trás, mas o silêncio ainda envolve os móveis do corredor. Devo ter imaginado. Continuo.
Depois da confusão na festa de ontem, sair do quarto de madrugada enquanto percorro o corredor sem ligar as luzes, parece-me uma atitude um tanto ou quanto suspeita. Acordar os meus pais agora seria uma péssima ideia. Ainda não sei qual será o meu castigo nem como vou encarar os meus colegas na segunda-feira de manhã.
A porta da sala das artes está trancada, como sempre, mas não me incomoda. Em criança aprendi um truque para abrir esta porta sem a chave, pois além de albergar peças muito valiosas, que era aqui que a minha mãe guardava tudo aquilo que não queria que estivesse ao alcance de olhares indiscretos. Quando éramos pequenos, André e eu esgueirávamo-nos muitas vezes até esta sala para procurar as prendas de natal ou a consola que ela nos havia tirado como forma de castigo. Às vezes, íamos apenas contemplar as obras de arte ou nos esconder do mundo.
O som da porta a abrir parece-me mais evidente no silêncio e, à minha frente, observo uma sala grande, espaçosa e elegantemente bem decorada. Na parede oposta ao local onde me encontro, uma enorme vidraça deixa entrar a luz da lua e sei que, se me chegar um pouco mais perto, serei brindada com uma vista magnífica sobre a piscina e parte do jardim. Agora, raramente venho aqui e as sombras da noite assustam-me. Olho em volta e o meu coração quase sai pela boca quando vejo uns grandes olhos brilhantes a olharem na minha direção. Pisco os olhos, ao mesmo tempo que eles se ajustam à fraca luminosidade, e vejo o Manel, o nosso gato bem acomodado na parte superior de um dos sofás. Deve ter ficado esquecido aqui.
A sala das artes é também o escritório da minha mãe, o seu refúgio e, tal como calculei, ela deixou o seu telemóvel a carregar aqui, em cima da mesa, ao lado do computador. Vou até lá e ligo-o facilmente. Já a vi colocar o código, inúmeras vezes. Pesquiso nas várias aplicações e, tal como ontem à noite, no meu telemóvel, não encontro nada de suspeito. Descanso a cabeça para trás no grande cadeirão de pele bege e descontraio um pouco. Respiro de alívio. Por momentos, pensei que ela teria colocado um localizador no meu telemóvel que lhe permitisse seguir-me, mas começo a achar que esta teoria da perseguição é completamente ridícula e que eu ando a ver demasiadas séries.
É melhor regressar para cama e pensar em formas criativas de tentar apaziguar as feras quando amanhecer. Antes de me levantar da cadeira, pego numa moldura branca com uma fotografia de nós os três. Aparece apenas três caras sorridentes. Sorrio também e passo os dedos pela imagem. A minha mãe sempre exigiu muito de mim, que caminhasse da maneira certa, que estivesse sempre bem penteada, mesmo nos dias em que não saíssemos de casa, que não comesse doces ou fritos... jamais deveria voltar tarde para casa e muito menos dar confiança aos rapazes da minha idade. Num encontro social, jamais deveria dizer que estava cansada e deveria ter sempre um sorriso para quem se aproximasse. Desde pequena, eram incansáveis os elogios das outras pessoas à minha educação e comportamento perfeitos, embora nalgumas dessas vezes, tenha levado um puxão de orelhas depois de chegarmos a casa por ter dado uma palavrinha ao menino do lado na igreja ou porque falei demasiado no jantar de natal.
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Imperfeitamente Perfeitos
RomanceO comportamento de Sol é imperfeito, altamente reprovável para muitos. Tem 22 anos e sabe que é imperfeita desde que nasceu. O comportamento de Mateus, de 29, é perfeito, uma pessoa e um médico exemplares. Conhecido como o "Menino de Ouro", faz que...