Capítulo 3 - O fim da linha

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ATUALMENTE

[Sol]

Depois de um dia particularmente focado na humilhação, regresso para casa de autocarro. O dia ficou cinzento durante a tarde, parece-me que está triste, mas provavelmente sou apenas eu. Quando entro em casa, apenas ouço o silêncio e verifico que nenhuma das minhas colegas de casa está. Uma leve sensação de alívio percorre o meu corpo, preciso de estar só. Vou para o meu quarto, e, já na cama, enrosco-me numa manta quente, descanso a cabeça na almofada e apenas olho o vazio.

Após algum tempo, sem que eu consiga evitar, as lágrimas descem pela minha cara num silêncio apertado. Não é o fim do mundo, há coisas mais graves, eu sei, mas por agora apenas extravaso o meu sentir. As lágrimas libertam parte da pressão que sinto por ter perdido o exame, por todas as consequências que isso acarreta, pela humilhação em frente aos meus colegas, pela minha estupidez na sala dele, pelas palavras que ele me disse, por pensar que ele ainda podia sentir algo por mim e pelo ridículo da minha situação neste momento.

À medida que as lágrimas descem, uma dor fria surge no meu peito, sobe até à minha garganta e começa a tomar conta de todo o meu Ser, como se rasgasse tudo por onde passa... Estou tão cansada de me defender, de lutar contra tudo e todos, estou tão cansada de não ser simplesmente aceite. Sinto-me tão estúpida! Nada do que eu faço está certo. Chego a sentir pena de mim mesma...

Decido secar as lágrimas, não quero permitir-me sentir. Engulo em seco algumas vezes e obrigo a dor que vai dentro de mim a calar-se. Devagar, os pensamentos vão se dissipando da minha mente e eu vou me rendendo ao cansaço extremo que sinto. Adormeço.

Quando acordo, dou uma olhada despreocupada ao telemóvel e vejo que tenho várias chamadas não atendidas de Rita e de Luca. Rita acabou por se tornar numa grande amiga depois daquele episódio na pastelaria e Luca é aquele amigo gostoso super fofo que está sempre lá quando é preciso. Tê-los na minha vida, torna tudo muito mais fácil em Ária. Gosto muito de ambos.

O Coyote Bar é um ponto de encontro popular no centro de Ária, o que me permitiu conhecer muitas pessoas da cidade. A grande maioria dos estudantes do Centro Académico frequenta o bar numa base regular, no entanto, embora gostem de o fazer, grande parte deles considera-se, claramente, superior às raparigas que servem bebidas, cantam e dançam em cima do balcão. Este é o local onde criam memórias loucas para contar aos amigos daqui a uns anos, antes de assentarem numa vida monótona e cheia de responsabilidades. As festas acontecem quase que diariamente e no calor da noite, no meio da animação, por vezes despimos uma peça ou outra e bem... digamos que o que me falta em popularidade junto dos meus colegas de curso, tenho em excesso junto dos rapazes de vários núcleos do Centro Académico.

Penso novamente em Luca e em Rita. Não me apetece falar com ninguém agora. Teria de explicar como foi o meu dia e não me apetece fazê-lo ao telefone. Decido falar com eles depois.

[Mateus]

Já escureceu e ainda estou na faculdade. Estive a trabalhar o dia todo aqui entre exames, notas e preparação de programas de estágio para o próximo ano. Estou cansado. Pouso a caneta e descanso a cabeça para trás na cadeira.

Penso no que aconteceu de manhã. Como Sol apareceu naquele vestido curto e incrivelmente sexy na minha sala. Não sei o que ela pensa que está a fazer com a vida dela, mas vê-la naquele vestido, perceber que não anda a dormir em casa incomodou-me p'ra caralho. Não que eu tenha alguma coisa a ver com isso. Há muito tempo que ela só faz o que quer. Enfim!

Apanhou-me desprevenido quando entrou aqui, quando se aproximou de mim, se insinuando. Senti raiva por ela ter aquele comportamento, por achar que poderia fazer aquilo com outros para conseguir coisas e fiquei furioso comigo mesmo por querer me aproximar dela mesmo assim. Sentir o seu cheiro perto de mim, a sua pele suave a tocar na minha, foi um vivificar de memórias que eu não quero recordar, que eu pensei terem ficado para trás. Sinto o meu peito doer de irritação! Há cerca de sete meses, fui convidado por antigo professor para o substituir na faculdade. Decidiu que era altura de se reformar. Eu não vou ser hipócrita comigo mesmo. Eu sabia que ela estudava aqui, mas pensei que a probabilidade de nos cruzarmos seria diminuta. Quero distância da Sol! Ela faz vir ao de cima o que há de pior em mim, a minha escuridão. É a belíssima tempestade que vem ao longe e quando passa deixa todo um rasto de destruição pelo caminho.

A luz do telemóvel em cima da mesa acende e ele começa a vibrar. No ecrã leio Dentista. Atendo.

— Sim. Agora?... É seguro?... O que aconteceu?... Qual o ponto da situação?... Envia-me as coordenadas vou já para aí!

Este último telefonema alterou os planos que tinha para esta noite. Tenho de sair rapidamente, mas antes faço mais um telefonema. Quando alguém atende, pergunto:

— Trabalhas hoje? Necessito de um favor!

[Sol]

O corpo todo me dói pelo cansaço e não me apetece levantar. Viro a cabeça e olho para o relógio:

— Porra, estou atrasada outra vez. Que merda!! Será que o meu dia não melhora? — Ligo para o trabalho a dizer que vou chegar atrasada. Tomo um banho rápido, coloco umas calças de ganga e uma camisola sem mangas. Ponho um casaco e vou para o bar.

Mal atravesso a porta de entrada do Coyote Bar, vejo Luca que vem, muito feliz, em direção a mim com um copo na mão ao mesmo tempo que grita bem alto:

— Parabéns à nossa menina prodígio que concluiu o quarto de medicina! — ele é um querido, faz-me sempre sentir que tem muito orgulho em mim. É algo que nunca senti antes e que talvez me fez aproximar um pouco mais dele — És fantástica miúda! — Continua. Decido que, finalmente, é hora de contar-lhe que não foi bem assim, mas antes que tenha oportunidade de o fazer, uma grande quantidade de pessoas à minha volta começa a festejar por mim. Entre palmas, gritos de felicidade, brindes e felicitações, sinto-me tão constrangida que, decididamente, não tenho a coragem necessária para dizer que perdi o exame. Rita aparece por trás dele com um sorriso, oferece-me um copo e abraça-me. Ok. Agora eu só quero enfiar um saco na cabeça e desaparecer. O dono do bar, vem também felicitar-me e diz que estou dispensada do serviço esta noite. Eu insisto que prefiro trabalhar e esquecer deste inferno de dia. Não menciono esta última parte, claro, mas ele insistiu mais. Deixo-me levar neste frenesim de festa e danço e bebo... muito! Luca está a tocar e a cantar esta noite. Chama-me para o palco. Cantamos os dois e dançamos muito.

A certa altura, dou por mim sozinha na casa de banho com a maquilhagem borrada. De repente, o espaço parece demasiado pequeno para mim. Quero respirar, mas tenho dificuldade. A dor no peito e na garganta, que antes havia sido calada, voltou agora esmagando cada bocadinho de força que ainda me resta. Eu tenho de sair daqui. Não aguento mais!

Não aguento mais não saber onde pertenço e a quem eu pertenço, não aguento mais não ter alguém que me conheça completamente e fique do meu lado mesmo assim, não aguento mais os olhares reprovadores... cheguei ao meu limite. Neste momento, não sei se é pelo alto teor de álcool no meu sangue, se é pela necessidade de estar só ou simplesmente por não conseguir continuar com esta mentira, abandono a festa sozinha.

Caminho um pouco, mas é difícil ficar de pé. Algumas pessoas circulam pela rua entrando e saindo nos bares. Após algum tempo, paro e seguro-me a uma árvore. Estranho! Um carro parou a alguns metros de mim. Será que alguém está a seguir-me? Ridículo. Devo estar a imaginar coisas. Olho para trás para tentar ver se reconheço o carro, mas as luzes ofuscam a minha visão e eu não consigo ver. Apenas retomo o meu caminho.

Estou muito mal disposta e sinto que vou vomitar a qualquer momento. O carro retoma a marcha. Quando viro à direita, ele vira também e quando paro junto a um banco na praça, ele parou novamente, apesar de nesta vez ficar um pouco mais afastado. O meu coração começa a bater mais rapidamente e sei que estou a ser seguida por alguém. Meto a mão na minha bolsa para tentar encontrar o telemóvel e pedir ajuda. Ao mesmo tempo que procuro, decido entrar num beco escuro para o despistar, o que parece que consigo.

Alguns metros depois, não consigo resistir mais, encosto-me à parede e começo a vomitar. Depois, devagar sento-me num chão imundo. Alguém tenta me abraçar, mas não lhe vejo a cara e só quero sair dali. Uma mistura de tabaco e perfume invade o meu nariz e eu tenho a certeza que conheço este cheiro de algum lado, mas aqui desorientada não consigo conectar as peças. Tento afastar-me deste abraço, mas a pessoa aperta-me mais até me magoar e sinto a sua língua no meu pescoço. Quero sair daqui, tento gritar, mas ele tapa a minha boca. De repente, sinto um puxão, alguém me bate, a minha visão escurece e desmaio.

Quais eram os planos de Mateus?

Por que foram interrompidos?

O que será que acontecerá a Sol?

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