Níunda

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Diante do deus sentado em seu trono, sinto tudo com mais intensidade. Viemos aqui para ursupar sua lança, e fomos descobertos, mas ainda estamos vivos. E Daemi está com aquela expressão que sempre fazia quando era flagrada aprontando. Não é de medo, não é de arrependimento, mas sim do mais puro e total descontentamento. Mas também, com um plano maluco e mal elaborado como esse não podia ser diferente. Os lobos de Odin voltam, se posicionam em seus lugares de origem e tornam a ficar imóveis como estátuas.
— Sei que estão com medo, mas não vou punir vocês — diz Odin, e ouço Loki fazer um som estranho de engasgo. — Quero apenas conversar. Daemi, entende qual o seu propósito em Asgard? Aquele que você viu em seu sonho?
— Hã... Roubar sua lança? — indaga Dae, incerta, e eu forço uma tosse nervosa. Só essa maluca para admitir que queria roubar Odin em pessoa.
Escuto Sarah também tentar apaziguar a situação com uma tosse forçada, de pé ao lado de Loki, que está ao lado de Daemi, pálido e em silêncio. Volto a olhar Odin, rezando para Dae não falar mais besteiras.
— Não, criança. Esse não é seu propósito.
— Então qual é? Aquele sonho não pode ter sido uma mera coincidência! — exclama Dae, apontando para a lança na mão de Odin. — Ela me pertence, eu sei que sim!
— Mais do que você imagina, menos da forma como você acredita — responde Odin, me deixando ainda mais confuso. E vejo no rosto dos meus amigos que não sou o único.
— Então... você vai me dar a Gungnir e nos deixar ir embora?
— Não até que saibam toda a verdade — os corvos de Odin, antes imóveis, agora levantam vôo, gritando e crocitando. Acompanhamos eles com os olhos até o teto, que está enevoado pela longitude. — O que vêem?
— Um guerreiro jovem com uma lança sobre um campo de batalha — responde Dae, prontamente. Coço os olhos e pisco várias vezes para clarear a vista, mas continua enevoado demais para destacar qualquer figura. Volto meus olhos para ela, e vejo que Loki a encara também, com o cenho franzido.
— Ela...
— Sim — interrompe Odin, olhando Dae com um carinho quase paternal. — Ela é a escolhida para salvar os nove mundos — diz Odin, e vejo que Daemi está com a expressão típica de deboche.
— Não sabia que ladrões eram tão bem recebidos no seu reino, mas isso já é um pouco demais — rebate Dae, e eu arregalo os olhos, chamando sua atenção novamente ao forçar uma tosse.
— Existe um motivo para você ter sonhado com a Gungnir e não é apenas para o seu bem pessoal. Você é Baldur em outro plano — ao meu lado, Loki dá uma gargalhada.
— Baldur? O Baldur? Aquele que morreu?
— Sim, Loki. Aquele que você provocou a morte — responde Odin, com uma pontada de irritação na voz. Encaro Loki, com a sobrancelha erguida.
— É bem a cara dele mesmo fazer isso — escuto Dae comentar, e ela balança a cabeça. — Olha, você com certeza deve estar falando do meu amigo aqui — Daemi me dá dois tapinhas no ombro e eu a encaro com os olhos arregalados. — Afinal ele é originalmente da Groelândia, enorme, loiro, muito educado e justiceiro, assim como a lenda de Baldur diz que ele era. É impossível eu ser esse cara. Na lenda diz também que ele era amado por todos.
— E odiado por alguns — alega Odin. — Baldur provocava sentimentos fortes e extremos nas pessoas que conhecia. Até o próprio destino o amava, até que por uma inconveniência — seu olho bom parece ganhar eletricidade estática quando olha para Loki, mas ele logo se acalma e volta a olhar para Dae. — Foi morto. E então o destino se voltou contra nós, causando o início do Ragnarok.
— Eu não sou Baldur. Isso é ridículo — contesta Daemi.
— Eu também não quis ver no começo — percebo Dae se esforçar para não rir e eu lhe lanço um olhar de alerta antes de voltar a ouvir o deus dos deuses nórdicos. — Mas sua influência se estende até os mortais, que sentem a sensação de perigo que Baldur exala. Enquanto alguns se sentem ameaçados — Odin volta seu único olho para mim, e sinto meus pelos eriçarem. — Outros se sentem completamente atraídos.
Sinto minhas bochechas quentes e percebo pelo canto do olho que Daemi me encara, fazendo meu coração acelerar. Engulo em seco e abaixo a cabeça, envergonhado.
— A cobra que Loki criou...
— E que o Thor jogou no nosso mundo, pra se livrar de um problema para vocês e nos arranjar outro — Daemi interrompe Odin. — É sempre assim, os poderosos cagam e precisam de nós, bodes expiratórios para limpar a sujeira — ela fecha uma mão em punho e usa a outra espalmada para bater na lateral do punho. — E a gente só se fode.
— Vocês serão recompensados.
— Do que adianta recompensa se eu vou estar morta ô seu caolho.
Se aquilo irrita Odin, ele não deixa transparecer. Sinto minhas mãos geladas e o pescoço duro. Daemi não possui filtro. E isso sempre foi um problema quando se trata de falar com autoridades. Mas esse é um nível completamente diferente.
— Você possuí um destino, uma missão. E ela é nos ajudar. Ao lado de Loki, serão heróis.
— Eu não vou fazer nada disso. Eu não sou uma heroína! — insiste Daemi e olho para ela, tentando imaginar o que se passa por sua cabeça. — Eu vim aqui para roubar você, não para salvar ninguém!
Odin se levanta e desce do trono calmamente, mas só aquele ato me deixa nervoso, e em alerta. O deus de aproxima de Daemi e direciona a ponta de sua lança para a garganta dela. Tento me mover, mas não consigo. A presença próxima do deus é simplesmente aterradora.
— Se não nos ajudar, seu destino e os de quem ama será pior do que a morte. E juro que não será pelas minhas mãos — engulo em seco e olho entre Odin e Daemi, vendo sua expressão impassível. Meu coração aperta ao lembrar de sua fala recorrente.
"Eu não amo ninguém".
È irônico, afinal Dae é querida por todos, e por mais que ninguém na vida dela a comova o suficiente para que ela se sacrifique, muitos dariam a própria vida por ela.
Eu daria.
Abro a boca para dizer algo, mas Dae é mais rápida.
— Tudo bem, eu vou ajudar.

Almas Escuras {Loki}Onde histórias criam vida. Descubra agora