Palacianos, 1117 - Prólogo

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Palacianos, 2º dia de Alim no mês de Amadam, 1117

Ammiel acordou assustado. Onde estava? Em seus braços, um bebê dormia tranquilamente, encolhido no meio de um cobertor. Ouvindo o som cadenciado da respiração de sua filha, ele sorriu. Delicadamente, beijou sua testa e a depositou no berço. Aguardou ainda alguns instantes para conferir se ela não acordaria e, caminhando com passos leves, apagou a maioria das velas e saiu pela porta, deixando-a entreaberta.

A porta de ligação do quarto o levou para um amplo e rico ambiente, iluminado por poucas chamas que faziam sombras animadas nas paredes. Àquela hora, uma brisa suave vinha da praia, fazendo o fogo dançar nas tochas e velas. A grande cama de dossel estava vazia, apesar dos lençóis desarrumados. Ammiel caminhou até a sacada e encontrou Merab largada em uma poltrona, os cabelos embaraçados pelo vento.

- Acho que cochilei enquanto a fazia dormir – disse Ammiel, dando um beijo em sua cabeça e sentando-se ao seu lado. – Demorei muito?

Merab sorriu, cansada, e, pegando a sua mão, beijou seus dedos.

- Precisamos conversar, Meu Raj.

- Ora! – Ammiel soltou uma sonora gargalhada. – "Precisamos conversar" e logo após "Meu Raj", só pode ser coisa séria! Sinto dizer que agora é tarde demais para me deixar, Merab.

Ela riu, enquanto prendia os cabelos em um coque desarrumado no alto cabeça. Apesar do sorriso leve, seus olhos estavam sérios.

- O que foi? - perguntou Ammiel, sentindo que o clima não estava para brincadeira. – Algum problema com os Rariff?

Rapidamente, Ammiel repassou os acontecimentos do dia em sua cabeça. No final da tarde, o Kral Azarias Rariff e sua Krali Agnes haviam chegado de Adij Rariff para uma visita. Com Hannah e Niall tão pequenos, não se viam há mais de um ano. Pela primeira vez, o menino Noa, agora com quase quatro anos, conhecera Mani. Todos se divertiram quando Merab colocou Mani em seus braços e Noa, nervoso, resmungou: - Não quero mais um bebê, obrigado.

Depois disso, as mães deixaram os bebês nos tapetes, enquanto todos se deleitavam com um farto banquete palaciano. Distraídos com a conversa, foi uma surpresa quando viram que um bebê chupava o pé do outro.

- Mani! Isso são modos? – gritara Merab, divertindo-se.

- Pelo jeito, esses dois vão ser íntimos – dissera Agnes.

Em nenhum momento, Ammiel sentira Merab estranha ou tensa como ela estava naquele momento. Porém, ele sabia que ela era perfeitamente capaz de esconder as maiores tragédias sem nada demonstrar.

- O que você viu, Merab? – perguntou Ammiel, passando os dedos pela sua bochecha.

- Ammiel... Quando eles se tocaram, eu tive uma visão. Eu vi Mani e o menino Rariff. Eu sinto que ela está destinada a ele.

Ammiel abriu um largo sorriso, ele adorava Azarias Rariff e sua família! Ficaria imensamente feliz em unir sua filha ao filho dele, se essa for a sua vontade... Mas Mani era tão pequena, apenas um bebê, não estava disposto a pensar em seu casamento agora. Se bem que era bom já saber que ela não se apaixonaria por algum desconhecido...

- Ammiel – chamou Merab, interrompendo seu devaneio. - Ele é um herdeiro.

- Ah... Tem razão – respondeu Ammiel, de repente, absorvendo as palavras de Merab. Um herdeiro.

- Não é tão simples. Eles têm um compromisso com a Cerimônia.

Maldição. A Cerimônia. Todos os outros clãs insistiam em participar daquela Cerimônia patética, casando seus filhos com outros filhos dos clãs, na esperança de terem herdeiros poderosos. Quantas vezes Ammiel debatera com Azarias o quanto aquilo era ridículo! Os poderes não vinham do sangue, eles vinham dos deuses. E apenas em momentos de necessidade. Os deuses ajudariam. "Nem todos são amigos dos deuses", dizia Azarias. Ele estava certo. Os Maël eram amigos dos deuses. Mas um casamento arranjado! Que destino mais triste! Renunciar ao amor, desistir de escolher com quem passar a sua vida. Era inimaginável.

- Não podemos participar disso, Merab. Não podemos abrir um precedente para os Maël. Um Maël é livre para escolher com quem vai se casar.

- Se a impedirmos de participar, Ammiel, não deixaremos que seja livre para escolher.

Ammiel respirou fundo, passando os dedos pelos cabelos longos. Sua filha tinha apenas um ano e ali estava ele, pensando em seu casamento. Não era assim que imaginara as coisas.

- Bom, podemos tentar convencer Azarias... Ele tem um filho mais velho. Este participará da Cerimônia e, então, Niall poderia ficar livre para fazer uma aliança conosco...

- Ammiel, pare... – começou Merab, pegando a sua mão. - Não estou falando de Niall. Estou falando do menino Noa.

- Noa. Hannah e Noa – repetiu Ammiel. – Mas Noa é o herdeiro de Azarias.

- E Hannah será a sua herdeira, Ammiel.

Ammiel se levantou abruptamente, seus longos cabelos se agitando em suas costas. Caminhou pela sacada, nervoso, os pés descalços tocando o chão gelado, incrustado por desenhos verdes e dourados.

- Isso não é bom, Merab.

- Não, Ammiel. Eu sinto... Eu sei que essa é uma configuração muito temida.

- Se os nossos clãs se unissem... Os Maël e os Rariff... Será o maior clã entre todos.

- Já somos os maiores. E os Rariff, os maiores logo após. E se nos unirmos...

- Querem nos derrubar por menos.

- Se souberem, vão tentar impedir que se casem.

- Qual a força disso, Merab? Qual a chance de acontecer?

- Vai acontecer, meu amor. Eu vi assim que ele a tocou. Eles não têm escolha. Estão destinados um ao outro.

Ammiel observou a esposa atentamente. Era sempre assim. Ela sabia demais, mas deixava que ele chegasse, aos poucos, até o lugar onde estava. Procurou na sua mente as implicações do que ela acabara de dizer. Pelo seu semblante grave, os desdobramentos de sua visão não seriam fáceis. Havia temor e apreensão em sua expressão. Como um Maël, Ammiel conhecia desde pequeno a profecia que tirava o sono da sua família. Um Maël não era apenas um Raj, nem somente o amigo dos deuses. Ele tinha um dever. O Portal era o seu dever.

- Essa visão combinada à profecia do último Maël, nos coloca em uma situação muito perigosa, Merab. Você viu isso.

- Sim... – Ela suspirou, indicando que ele chegara à mesma conclusão que a dela. - É agora ou nunca, Ammiel. Quem quiser nos derrubar, assim que souber dessa aliança com os Rariff, vai ter certeza: é agora ou nunca.  

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