II 2.4 1º de Aravind em Babakur

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Pouco depois que o Kaal a deixou, Chris sentiu a presença de Damien se aproximar. Assim que ele entrou na Ala do Kaal, vazia, exceto pelos dois, sua energia preencheu cada espaço do ambiente. Se ela o odiasse, aquele efeito seria sufocante. No caso de Damien, era reconfortante. Ela não precisou se virar. Ele foi até ela, caminhando lentamente até parar ao seu lado, observando também a vista.

- Tem certeza sobre isso? – perguntou Damien.

- Sim. Por favor – ela respondeu.

- Ainda temos algumas horas até todos se levantarem, mas devemos partir logo.

Poucos minutos depois, os dois atravessavam o campo em frente à fortaleza, montados no corcel branco de Damien. Àquela hora da manhã, os raios eram fracos, apenas começando sua rota no céu. Chris olhou para eles, vinham da direção para onde iriam. Seguindo os raios, eles contornaram a fortaleza, desceram pela encosta e adentraram na floresta. Damien dominava o cavalo com excelência, guiando-o rapidamente entre as árvores. Se fossem flagrados, tudo que se veria seria um risco branco entre as árvores negras.

Apesar de aquele ter sido o seu pedido, Christine estava apreensiva, até com medo. Estava, deliberadamente, remexendo em memórias antigas, entrando numa zona proibida onde o inimigo era mais forte. Mas ela precisava fazer isso.

Sentindo a brisa gelada contra o seu rosto, pensou naquele dia: primeiro dia de Aravind no mês de Babakur. Era o deus da beleza, Vïc Aravind, quem protegia a sua caminhada, quem estivera ao seu lado desde o primeiro passo. Ela sabia, desde pequena, que era uma criança bonita, que podia conquistar a todos com seu jeito dengoso e olhos pidões. Ela crescera, mas nada mudara. Conquistava quem quisesse, mas agora usava os artifícios de uma mulher crescida. Exceto por Rariff, pensou, com um sorriso. Ele não se rendia.

Mas assim como Aravind a guiava, ela sabia que ele era o deus que tirara o que lhe era mais caro. Por causa de sua beleza, sua mãe se prendera em uma teia de sofrimento, acusações e dor. O mês de Babakur não poderia ser mais correto: era ele, o deus da dor, que regia toda a sua vida. Suas primeiras lembranças eram de dor. Ver o quanto sua mãe sofria fazia com que ela mesma sofresse. Ela achava, na sua inocência infantil, que sentia a mesma dor que sua mãe sentia, que sabia o que ela passava, que estava com ela para tudo. Mas foi apenas quando seu pai, sem ter mais em quem descontar sua raiva, ergueu sua mão para ela pela primeira vez, que ela soube. A dor física poderia ser pior que a emocional.

Mais de uma hora se passara em uma cavalgada vertiginosa e desenfreada, mas, perdida nesses pensamentos, ela nem notara. Damien corria o máximo que o cavalo permitia, seus cabelos brancos voando para trás, e Christine se segurava com força em sua cintura. Ela o agradeceria eternamente por aquilo, sabia o quanto Damien odiava qualquer tipo de contato físico. Mas, desde que ela descobrira que iriam para Adij Rariff e que Damien estaria entre os guardas do Kaal, ela fizera o pedido. As palavras apenas escapuliram de seus lábios, sem muita reflexão. Era assim quando um desejo vinha tão fundo do coração.

Apesar da dor e das memórias que aquele lugar lhe traria, era por causa de seu coração que estava ali, ela pensou, quando Damien começou a desacelerar. Eles avistaram um grande descampado, as folhas secas se misturavam às cinzas, como se o fogo tivesse tomado todo o gramado. Quase ao horizonte, uma fortaleza antiga e negra se erguia.

- Está pronta? – perguntou Damien.     

- Sim – afirmou Christine, observando por cima de seu ombro.

Com um gesto enérgico, ele fez com que o cavalo cruzasse o campo, levantando uma poeira cinza. Ela observou a fortaleza, abandonada e fria, como uma rocha há muito tempo esquecida. Era um pouco como ela, como seu coração. Mas, por mais que quisesse ser indiferente, que amasse ter sua cama cheia de homens e mulheres com quem não perderia nenhum segundo se importando, ela amava. E muito. Afinal, apesar de Aravind e Babakur em sua tríade, ela nascera na segunda hora de Ayman, a deusa do amor. E era por amor que ela estava ali.

O Portal II | Livro 2 - DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora