II 2.3 Charlize

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Noa acordou em seus aposentos pela primeira vez em meses. Apesar de amar o clima em Palacianos, aquele não era o seu lar. Já Shailaja abrigava uma infinidade de obrigações. Agora essas obrigações estão aqui, lembrou-se, irritado, resolvendo ficar mais uns momentos na cama. Seu quarto era o último daquela ala e, por isso, tinha a mesma vista do salão para o campo verde de Adij Rariff, o declive suave da montanha, a cidadela e, enfim, o mar revolto. Geralmente, ficava ali sozinho e tinha todo o aposento para si. Contemplar as ondas violentas era um de seus passatempos favoritos quando ainda era um menino. Ele se levantou, pulando da cama e abriu as cortinas. O quarto era amplo, o maior entre os seus aposentos pessoais. Além deste ambiente, onde estava uma enorme cama coberta pelas mais finas peles, havia um escritório com uma mesa e uma poltrona e uma saleta de estar, com duas longas cadeiras de couro que se estendiam para que ele pudesse esticar os pés. As cadeiras ficavam voltadas para a vista e, ali, Rariff costumava ler um livro assistindo aos últimos raios de Amandeep que se punham sobre o oceano.

Na extremidade oposta do aposento, um comprido banheiro se seguia, com uma banheira que era quase uma piscina. Em frente à banheira, um grande vitral iluminava o chão de pedra azul escura, marcando sua superfície com luzes coloridas. Era uma ilustração de Aamadu, o fiel cavalo de Vïc Anandi. Sua crina marrom esvoaçava enquanto ele percorria um campo esverdeado, rodeado de rochas. Assim que entrara do banheiro na noite anterior e vira o vitral, Noa se lembrara imediatamente de Hannah. Seria Aamadu um cavalo d'água como os que Joshua conhecia de Palacianos? Fazia sentido, afinal os palacianos eram conhecidos como os filhos de Anandi.

Não saber onde ela estava se tornara uma tortura para Rariff. Ele sentia seu corpo cansado pelas noites seguidas sem quase dormir. Por mais que o sono o dominasse, ele era perturbado, incômodo. Seus pensamentos, mesmo no inconsciente, rumavam para ela, buscando-a, procurando-a. Precisava saber que estava viva. Precisava saber que estava a salvo. Mas e se não estivesse?

Aquela ideia o assombrava a cada hora e, Noa sabia, não iria embora tão cedo. Ele não tinha um plano eficaz para descobrir seu paradeiro, mas ele se apegava a algumas esperanças. Seu tio ordenara uma caçada para encontrá-la. Como o objetivo era trazê-la com vida e imaculada, Noa não se opusera. Seria a única chance de aplicar seus homens nessa busca. E ele preferia Hannah nas masmorras de seu tio do que nas mãos dos taús. Se ela fosse encontrada, ele daria um jeito de garantir sua segurança ali. Mas sem saber onde estava, ficava impossível ajudá-la.

As palavras de Damien também eram um acalento: Não é tão fácil matar um Maël.

Noa precisava admitir que Damien conhecia a história de Hannah mais do que ele próprio. O comandante do Exército Negro confiava em Hannah e sugerira que ela desse o sinal dos seus ancestrais, o que ela fez sem dificuldade. Nesse momento, através das compridas janelas que subiam pela parede, Noa viu a figura branca que atravessava o campo. Era cedo demais, mas lá estava ele: o demônio branco, Damien, seu novo guarda. Montava seu corcel alvo como seus cabelos e usava o uniforme de Adij Rariff. Por que aquele homem insistia em protegê-lo? Noa ainda não entendera, mas estava determinado a descobrir.

Naquela hora da manhã, a fortaleza dos Rariff fazia uma sombra ameaçadora na colina, esticando suas torres pontudas pela grama até a grande estrela de Alim surgir quase na floresta. Gostaria de ter um pouco da sabedoria de Alim para entender o que acontece em minha vida, refletiu Noa, jogando um colete por cima do corpo. Ele saiu de seus aposentos com passos decididos esperando não encontrar ninguém no caminho, mas, assim que cruzou o corredor, viu Christine postada em frente às janelas.

- Meu Kaal – ela cumprimentou. Usava um vestido tão roxo quanto as magnólias que enfeitavam toda a fortaleza e trazia um semblante cansado.

- Srta. Gwenaël – respondeu Noa, detendo-se por um instante. Desde o dia da batalha, Noa não havia ficado a sós com Christine e isso o incomodava. Mesmo sob o efeito do Lírio de Amandam, ela ficara acordada e sabia o que acontecera. Será que o achava um covarde? Por não contar a verdade? Por não defender Maël das calúnias de seu tio?

O Portal II | Livro 2 - DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora