I 1.5 Desfile da derrota

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Ela estava bem na sua frente. Sua pele era macia como ele se lembrava: suave, delicada. Ele tentou tocá-la, mas não conseguia senti-la, ela era como uma névoa que escapava entre seus dedos. As suas costas estavam marcadas e ele sentiu a ardência da cicatriz. Ele sabia como era aquela dor e pôde sentir na própria pele. Uma marca, duas marcas, três, quatro... Agora, um menino estava caído no chão. Era mirrado e sujo, mas seu olhar, determinado, feroz.

Noa ouviu a própria voz: - Aquele menino. Ele me deu coragem.

Um homem chegou, montando um enorme cavalo negro. Sua postura era hostil e ele teve certeza de que aquele homem o odiava.

- Não me inspiraria nele. Ele não se importa com a própria vida. Você não sabe do que ele é capaz.

- Já chega, Luc – ecoou a voz de Damien.

Noa acordou suado, apesar do clima frio em Shailaja. Aquela era sua última noite na fortaleza. Caminhou até a sacada, sentindo a brisa gelada e o cheiro de queimado. Mais um dia se passara e ele não tivera notícias de Hannah. Aquele sonho... Seu colo nu na frente dos taús, seu olhar destemido, sua postura de rani... Ele sentiu uma mágoa profunda lembrando de suas últimas palavras para ele.

- O senhor não conhece seu tio! Não conhece sua própria história! Não serei uma refém dos Rariff! Nunca mais! 

Ele não poderia culpá-la. Nunca. Até mesmo quando Noa era apenas uma criança ele havia se revoltado com o tratamento dado a Hannah. Ür a mantivera presa, amarrada ao pé da cama à noite, como um bicho enjaulado. Noa sabia que, há muitos anos, pegara suas lembranças mais doloridas e as trancafiara no fundo de sua mente. Mas agora chegara o momento de relembrá-las. Por mais que doessem, custe o que custasse.

Damien, pensou Noa. O sonho daquela noite confirmava mais uma suspeita que ele tinha. Aquele menino mirrado, o que sobrevivera a tantas marcas dos taús, não era um menino. Era Hannah. Apesar da impossibilidade daquilo, Noa tinha certeza. Era Hannah o tempo todo. O garoto era pequeno e magrelo, como Hannah. Mas as feições eram diferentes. Seria possível? Mas Damien estivera lá, no acampamento taú. Ele poderia confirmar suas suspeitas.

Noa refletiu sobre as palavras do outro homem, Luc como Damien o chamara, em Hiwot: "Ele não se importa com a própria vida. Você não sabe do que ele é capaz". Se estivesse falando de Hannah, então ele estava correto. Ela não parecia se importar em arriscar a própria vida, pensou Noa, amargamente. 

Minutos antes da batalha, Damien havia feito uma reverência de respeito a Hannah. Ele caminhara ao seu lado, depois fora escolhido como um dos cavaleiros para segui-la até a frente de batalha. Cada vez que pensava naquela noite, Noa tinha mais certeza: Damien a conhecia. Seria Damien um aliado dos Maël ou um aliado dos Rariff? Existia algum sentido em um aliado dos dois lados? Qual poderia ser o seu interesse?

Apesar disso, Damien o protegera duas vezes. Quem sabe até mais vezes e ele nem sabia? Queria respostas, mas precisava mantê-lo ao seu lado. Precisava ganhar a sua confiança. Estava cansado de fazer perguntas e ser ignorado. Não seria mais assim, decidiu. Chega de perguntas. Vou descobrir o que escondem por conta própria.

Passando os dedos pelo parapeito de pedra, Noa se lembrou do seu último encontro com Hannah no quarto. Ela estava na sacada, descalça e com os olhos vermelhos. Ele a abraçara para confortá-la, mas não fazia ideia do que se passava em sua cabeça. Nunca soube, pensou. Naquela noite, ao contrário das outras vezes, ela o beijara. Ela o puxara para si, os dedos frios em sua nuca, os lábios salgados pelas lágrimas nos seus. Ela sabia, percebeu Noa, que seria a última vez.

As palavras daquele encontro doíam mais que as palavras de sua despedida: "Não posso me casar com o senhor. Nem agora, nem nunca. Jamais irei me casar". Noa sabia que seu tio era uma ameaça. Ele sabia que Hannah não queria mais mortes. Ela não queria ter ninguém de seu sangue para temer por sua vida. Mesmo assim, ele estivera confiante de que poderia convencer Ür. Afinal, fazia sentido unir os herdeiros dos dois clãs e todos saíam ganhando, tanto Adij Rariff quanto Palacianos. Mas agora via que fora inocente. Fora estúpido mesmo. Ür não ligava para ele, nem para a sua segurança. Não enviara nenhum reforço para Shailaja. Ele ainda tinha a coragem de chegar ali e fazer um belo discurso sobre como todos estariam protegidos em Adij Rariff e como Noa havia liderado a batalha exemplarmente. Patético!

O Portal II | Livro 2 - DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora