I 1.1 Shailaja, 1133

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Shailaja, 2º dia de Amadam no mês de Bahadur, 1133

Noa se aproximou da comprida janela até sua testa encostar no vidro gelado. Lá embaixo, o campo estava tomado por criados que levavam malas, caixas e traziam cavalos. Seus passos apressados esmagavam a grama queimada, levantando cinzas e criando uma nuvem de poeira. Mais adiante, quase no limite com a floresta de pinheiros, a terra estava revirada em centenas de montes irregulares. Fora ali que, no dia anterior, os homens de Shailaja haviam cavado e cavado e cavado até o último raio de Amandeep deixar o céu.

Cada homem taú fora enterrado ou, pelo menos, o que sobrara de seus corpos. Dali do alto, do escritório de Yezekael, Noa conseguia ver ao longo de toda orla, até onde a névoa fria permitia. Às suas costas, Yezekael repousava pensativo com a perna esquerda apoiada na cadeira em frente. Se machucara quando tombou após o efeito do Lírio de Amadam. Agora, graças à explicação de Damien, Noa sabia que o Lírio de Amadam era usado em unguentos e preparados que, com o tempo, eram capazes de prevenir o desmaio causado pela exposição ao seu formato natural. O unguento que usava para a dor em sua cicatriz era feito dessa flor e, como Noa o aplicava há anos, já havia criado uma resistência ao seu odor sonífero.

Sua atenção foi desviada para a linha do horizonte onde conseguiu distinguir novos vultos. Desde a batalha, aguardava a chegada de seu tio. Sabia que Ür chegaria a qualquer momento. Ainda não sabia se era Ür que vinha nessa comitiva, mas já sentiu o ódio arder no fundo do seu estômago. Há três dias, enfrentaram um exército inteiro de taús. Há dois dias, enterraram os soldados que haviam falecido em campo aberto e cuidaram de centenas de feridos. No dia anterior, deram um fim digno aos corpos dos taús e começaram os preparativos para deixar Shailaja. Tudo isso sem qualquer ajuda do Kral.

Noa assumira seu lugar no comando, traçando a estratégia de defesa com Damien e Yezekael, lutando ao lado dos seus homens e consolando a todos pelas suas perdas. Por que Ür não enviara reforços? Apenas quatro pessoas permaneceram conscientes no Salão Mavi para saber o verdadeiro motivo por trás do ataque dos taús. Rariff se lembrou das palavras da profecia: "Marcado pela minha dor, herdeiro virou guerreiro. Mate o filho da lua branca ou o portal nunca se abrirá para você". Os taús atacaram para buscá-lo, eles o queriam, Noa Rariff, o herdeiro marcado. Mas seria ele um guerreiro? Apesar daquela batalha, não se sentia ainda um guerreiro. E ele sabia que não era o filho da lua branca. Havia apenas uma marca em suas costas.

Afastou aqueles pensamentos enquanto via os vultos da comitiva do Kral avançarem ainda mais. Não tinha mais dúvidas de que seu tio chegara. Precisava decidir o que diria. Noa sabia muito bem que Hannah o salvara. Ainda não conseguia acreditar que ela causara a chuva de fogo, mas ela dera o sinal dos Maël para afastar os taús. E ela trocara a sua vida pela de Noa. Se entregara aos taús para que Noa fosse poupado.

Ür não saberia disso. A única pessoa em quem confiava era Yezekael, e Noa fora até o escritório do mestre para se abrir com ele. Contara sobre a cicatriz, sobre a profecia, sobre as palavras duras de Hannah. Yezekael o ouvira com atenção, mas ainda não emitira uma opinião. Noa começava a ficar impaciente.

- Yezekael, vejo a comitiva de Ür - alertou.

- Certo - disse Enzo, levantando-se devagar e equilibrando-se em uma bengala improvisada. Ele abriu a porta do quarto e chamou a criada: - Martina, por favor, ache Damien, o comandante do Exército Negro.

Quando a criada saiu, ele disse: - Acredito que já ouviu a história que corre Shailaja.

- Sim – admitiu Noa, com raiva.

- Maël atraiu os taús e incendiou seu exército.

- Isso não faz o menor sentido.

- Não, não faz.

O Portal II | Livro 2 - DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora