Capítulo 1 | Yaman

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Frio. Essa é primeira coisa que Yaman sente todas as manhãs. Parece algo automático, ao menor sinal de consciência, seu corpo procura a presença que costumava esquentar seu lado esquerdo da cama, porém, tudo que ele encontrava era o vazio do que antes esteve lá. A frieza dos lençóis que já foram quentes.

Há três meses ele lidava com esse tormento. Dia após dia procurando a presença dela e não encontrando nada. Durante anos Yaman se sentiu confortável com a própria presença. Sua hora preferida do dia sempre foi a noite, quando se trancava em seu quarto e desfrutava o silencio do vazio. Agora, aquela hora era a mais perturbadora.

Ele achava que a mudança de ambiente poderia ajudar nessa tortura diária, mas ironicamente apenas piorou. A expectativa de encontrar sua esposa e sobrinho em cada canto da nova casa o perturbava. Ele escolheu cada móvel daquele lugar pensando unicamente em sua família.

Mais de uma vez ele se pegou pensando "Seher iria gostar desse quadro? Yusuf teria espaço o suficiente para correr nessa disposição de móveis?". Portanto, mesmo mudando de cenário, absolutamente tudo lembrava eles. Tudo o lembrava o fato dele ter destruído a própria família com uma mentira devastadora.

Essa sensação de sufoco era igualmente ruim toda vez que ele passava pelo quarto no fim do corredor, o quarto que ele havia escolhido para Yusuf. Embora seu sobrinho nunca tenha tido a chance de opinar, Yaman sabia que o garoto iria amar aquele lugar. Seguia o mesmo tema do quarto anterior, com a pequena diferença da cama ser em forma de um navio e a janela ter uma vista privilegiada de sua nova propriedade.

Apesar das circunstâncias, Yaman decidiu seguir com o plano que habitava sua mente alguns meses antes da partida de sua família. Ele pretendia mudar de casa e enterrar de vez todas as lembranças ruins que aquela mansão o trazia. A conversa com Seher no leito do hospital foi decisiva em relação ao tipo de casa: uma propriedade rural.

Agora ele vivia em uma espécie de fazenda nos arredores de Istambul. Conhecendo o apreço do sobrinho pelos animais, ele decidiu criar ali uma variedade considerável deles. E o que mais lhe chamava atenção eram os cavalos. Yaman encontrou nos equinos uma válvula de escape de sua realidade, ele podia passar horas ali cavalgando e não sentia o tempo passar. Era o único momento de seu dia que ele não se torturava com as lembranças dolorosas de seus últimos momentos com sua família. Enquanto cavalgava, ele se permitia lembrar do sorriso tímido de sua esposa e a alegria inocente de seu sobrinho. Chegava até a imaginar como seria tê-los ali, cavalgando ao lado dele.

Ironicamente, ele encontrava uma certa paz em saber que ambos estavam bem e seguros longe dali. Duas semanas após a fuga de Seher, Nedim conseguiu encontrá-los em uma pequena cidade portuária nos arredores de Izmir. Yaman ainda estava debilitado devido ao tiro, mas fez questão de ver com seus próprios olhos que eles estavam bem. Ele lembra como foi doloroso vê-los de longe, sem poder se aproximar para não a alertar de sua presença.

Seher havia conseguido um emprego em um restaurante e Yusuf agora frequentava uma escola. Yaman recorda que não conseguiu conter o sorriso orgulhoso ao ver seu sobrinho fardado e brincando com seus amigos, pois ele sabia que a questão da interação de Yusuf com outras crianças sempre preocupou Seher.

E ela, bem, ela estava bela como sempre, mas vê-la servindo os clientes do restaurante o deixou incomodado, para ele sua esposa nunca serviria ninguém. Viveria uma vida confortável longe de qualquer trabalho árduo, desfrutaria o melhor da vida ao lado dele. Mas lá estava ela. Atendia os clientes com um sorriso no rosto. Sorriso este que Yaman reconheceu como forçado. Os meses o permitiu conhecer todas as feições de sua esposa, ele podia reconhecer seu semblante preocupado, envergonhado e, neste caso, exausto.

Em seu breve momento de observância, ele pôde notar que longe dos outros olhos, Seher parecia extremamente cansada. Olheiras que ela tentava disfarçar com maquiagem preenchiam seus olhos, e ela também parecia um pouco mais magra.

Doía saber que o responsável por tudo isso era ele. Doía ainda mais saber que ele não podia fazer nada para melhorar a situação. Não podia sequer se aproximar, pois sabia que se ela o visse, arrumaria suas coisas e fugiria novamente com Yusuf.

Essa situação o obrigou a contratar seguranças disfarçados para cuidar da segurança deles. Apesar de respeitar a decisão dela, ele não podia deixá-los a própria sorte, ele sabia que seus inimigos não os deixariam em paz caso os encontrasse.

E é claro que este não era o único motivo. Ele não suportaria viver sem ter atualizações do que eles estavam fazendo. Se ele concordou em aceitar a distância de sua família, foi porque pretendia ficar de olho neles. Ter acesso a cada aspecto da vida deles. Era seu único momento de felicidade genuína no dia, ver o sorriso do sobrinho enquanto recebia um beijo de sua tia antes de adentrar a escola. Mesmo através das fotos ele podia quase ouvir o som de sua risada infantil.

No fundo, Yaman sabia que estava predestinado a um futuro solitário e infeliz. E estava tudo bem. Para ele, era o suficiente saber que sua esposa e sobrinho estavam bem e que seu irmão estava seguro em casa, longe da possibilidade de ser preso e internado em um hospital psiquiatra. Ele poderia viver com aquilo, mesmo que doesse cada vez que lembrava da felicidade que já sentiu e que ainda poderia sentir, caso tivesse sua família completa ao seu lado.

Ele já estava conformado com a situação quando algo mudou. Um sopro de esperança em meio a uma tempestade.

Um único grito cortou o silêncio de seuescritório. E o que ele achava que seria sua perdição, acabou se tornando suasalvação.

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