CAPÍTULO 15

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Acho que estamos transformando isso num hábito só nosso. A leitura do roteiro na WaHo. Daniel não está de carro hoje, então vai para casa comigo depois da aula na sexta. Sei que deve ser horrível para Daniel morar tão longe, mas adoro quando ele dorme lá em casa.

Como era de se esperar, chegamos antes de Amber. Está mais cheio hoje. Pegamos uma mesa, mas fica perto da entrada, então parece que todo mundo está nos observando. 

Daniel se senta na minha frente e na mesma hora começa a construir uma casinha com embalagens de geleia e saquinhos de açúcar.

Amber entra e, em sessenta segundos, muda de ideia duas vezes sobre a bebida que vai pedir, arrota e derruba a casinha de açúcar de Daniel com um movimento entusiasmado demais. 

— Argh. Desculpa. Desculpa. — Pede ela. Daniel olha para mim e abre um sorrisinho. — E esqueci meu roteiro — acrescenta Amber. — Merda.

Ela está inspirada hoje.

— Pode ler comigo — diz Daniel, se aproximando dela.

A expressão de Amber. Eu quase caio na gargalhada.

Vamos direto para o segundo ato, e o resultado é um pouco menos desastroso do que na semana passada. Pelo menos, não tenho que dar a deixa para todas as falas. Eu começo a divagar.

Estou pensando em Kat, sempre Kat, porque minha mente só divaga em uma direção, na verdade. 

Recebi outro e-mail dela de manhã. Ultimamente, estamos trocando e-mails quase todos os dias, e é meio louco como ela toma conta dos meus pensamentos. Quase fiz uma besteira no laboratório de química hoje porque estava escrevendo mentalmente um e-mail para Kat e esqueci que estava manipulando ácido nítrico.

É estranho, porque os e-mails de Kat eram algo destacado da minha vida real. Mas, agora, talvez sejam minha vida. Em todos os outros momentos parece que estou me arrastando por um sonho.

— Ai, droga, Amber. Não! Para com isso! — implora Daniel.

De repente, Amber está ajoelhada na cadeira, com a cabeça inclinada para trás, a mão no peito, e cantando. Ela começa a entoar o grande número musical do segundo ato da peça. Está usando sua voz de Fagin, grave, com vibrato e ligeiramente britânica. E está totalmente entregue ao momento.

As pessoas estão olhando para a gente. E estou sem palavras. Daniel e eu ficamos nos entreolhando no silêncio mais constrangedor que já aconteceu no planeta Terra.

Ela cantou a música toda. Acho que andou ensaiando. E aí, não estou de brincadeira, ela se acomoda na cadeira como se nada tivesse acontecido e derrama calda no waffle.

— Nem sei o que dizer para você — comenta Daniel. Ele suspira e a abraça.

Sério, gente, ela parece um personagem de anime. Quase consigo ver corações saltando dos olhos dela. Amber olha para mim, e a grande boca de banana está escancarada em um sorriso. Não consigo evitar sorrir para ela também.

Talvez ela seja minha chantagista pessoal. Talvez também esteja se tornando uma amiga. Vai saber se isso é permitido.

Ou talvez seja só o fato de eu estar me sentindo estranhamente empolgada. Não sei explicar. Tudo é engraçado. Amber é engraçada. Amber cantando na Waffle House é total e incompreensivelmente hilário.

Duas horas depois, damos tchau para ela no estacionamento. Daniel e eu entramos no meu carro e vamos para casa. O céu está escuro e limpo, e trememos de frio por um minuto até o aquecedor começar a funcionar.

— Quem está cantando? — pergunta Daniel.

— Ed Sheeran.

— Ah.

Estamos escutando o CD que Chan fez para mim, que tem três músicas do Ed Sheeran. Bangchan tem uma paixonite por ele. Não dá para não ter uma paixonite por Ed Sheeran. Sou dez anos mais nova do que ele e inquestionavelmente lésbica, mas, sim, eu daria uns beijos nele.

— A Amber hoje, gente... — diz Daniel, balançando a cabeça.

— Que esquisitona.

— Uma esquisitona meio fofa.

 O carro está quentinho agora, e as ruas, quase vazias, e tudo está silencioso, aconchegante e seguro.

— Definitivamente fofa. — conclui ele — mas, infelizmente, não é o meu tipo.

— Nem o meu — digo, e Daniel ri.

Sinto uma pontada no peito. Eu devia contar para ele logo. Kat vai abrir o jogo para a mãe hoje, ou pelo menos esse é o plano. Elas vão jantar em casa, e Kat vai oferecer um pouco de vinho para ela. E aí, vai respirar fundo e contar. 

Estou nervosa por ela. Talvez com um pouco de inveja. E com uma estranha sensação de perda. Eu meio que gostava de ser a única a saber do segredo dela.

— Daniel. Posso te contar uma coisa?

— Claro, o que foi?

A música parece sumir. Paramos em um sinal vermelho, estou esperando para virar à esquerda e só consigo ouvir o estalo frenético da seta piscando. Acho que meu coração está batendo no mesmo ritmo.

— Você não pode contar para ninguém — acrescento. — Porque ninguém sabe.

Ele não fala nada, mas percebo que está se virando para mim. As pernas estão dobradas no banco. Ele espera.

Eu não planejava fazer isso hoje.

— Então. É o seguinte. Eu sou lésbica.

É a primeira vez que digo isso em voz alta. Hesito, com as mãos no volante, e espero sentir alguma coisa extraordinária. O sinal fica verde.

— Ah — diz Daniel.

E, em seguida, há uma pausa densa, carregada.

Faço uma curva à esquerda.

— Heejin, pare o carro.

Há uma pequena padaria à direita, e eu paro na entrada. Está fechada agora. Eu coloco o carro em ponto morto. 

— Suas mãos estão tremendo — diz Daniel, baixinho.

Ele puxa meu braço, levanta a manga do meu casaco e coloca a mão sobre a minha. Sentado de pernas cruzadas no banco, Daniel se vira de lado e fica de frente para mim. Mal olho para ele. 

— É a primeira vez que você conta para alguém? — pergunta ele, um instante depois.

Faço que sim.

— Nossa. — Ele respira fundo. — Heejin, eu me sinto honrado.

Eu me recosto no banco, suspiro e me viro para ele. O cinto de segurança me incomoda. Puxo a mão, fazendo Daniel soltá-la. Então, seguro de novo a mão dele, que entrelaça os dedos nos meus.

— Você está surpreso? — pergunto.

— Não.

Ele me olha intensamente. Iluminados apenas pela luz dos postes, os olhos de Daniel são quase só as pupilas, com um contorno castanho e fino.

— Você sabia?

— Não, nem desconfiava.

— Mas não está surpreso.

— Você quer que eu fique surpreso?

Ele parece nervoso.

— Não sei — respondo.

Ele aperta minha mão.

Eu queria saber como estão indo as coisas com Kat. Queria saber se Kat, assim como eu, está sentindo o estômago dar cambalhotas. Na verdade, ela deve estar sentindo bem mais do que isso. Deve estar tão nauseada que quase não consegue colocar as palavras para fora. Minha Kat. É estranho. De certa forma, sinto como se eu tivesse feito isso por ela.

— O que você vai fazer? — pergunta Daniel. — Vai contar para as pessoas?

Eu hesito.

— Não sei. — Nunca pensei nisso. — Mas acho que vou acabar contando, sim.

— Tudo bem. Olha, eu amo você, Jin. — diz. 

Ele me cutuca na bochecha. E vamos para casa.

Heejin vs The Homo Sapiens AgendaOnde histórias criam vida. Descubra agora