Capítulo 8

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Pensei que Amélia ficaria distante em seus primeiros dias na Itália mas, sempre surpreendente, me mandava mensagens a cada cinco minutos. Narrou todos os acontecimentos em pequenos detalhes e eu não conseguia focar nem nas aulas nem nos trabalhos, sempre ansiosa para a próxima história.

Amélia: O motorista do táxi foi rude comigo e o alojamento tem um banheiro tão pequeno que eu não sei como vou conseguir me mexer para tomar um banho.

Amélia: Parece que ninguém limpa esse lugar há séculos, sinto que meus braços vão cair de tanto esfregar os móveis.

Amélia: Pelo menos está calor, não vou sentir falta do nosso clima tropical pelos próximos meses...

Amélia: Desisti dos produtos usuais, passei desinfetante até nas paredes. O cheiro, Fiona, meu Deus, vou deixar as janelas abertas para sempre!

Amélia: Exagerei no cheiro, está mais para um lugar que ficou muito tempo fechado do que "acho que alguém morreu aqui".

Amélia: Ok, vou comer... Será que essa parte vai dar certo?

Uma pausa de uma hora.

Amélia: Confesso que uma parte de mim acredita que essa foi uma boa escolha só por causa do macarrão...

Amélia: Voltando para o apartamento...

Amélia: Tropecei nos paralelepípedos na frente de um monte de adolescentes, não foi meu ponto alto. Adolescentes são muito maus.

Outra pausa.

Amélia: O sol está se pondo e acho que finalmente esse armário está limpo para receber minhas roupas.

Amélia: Mas vou comprar um colchão novo.

Uma semana depois.

Amélia: As aulas são muito muito muito boas! Mas ainda preciso me acostumar com a língua, os professores falam muito rápido.

Amélia: Fico um pouco triste toda vez que chego no apartamento e não te encontro...

Amélia: Como está a Nala?

Um mês depois.

Amélia: Não acredito que estamos juntas há tanto tempo... Parece que tudo aconteceu há duas semanas.

Amélia: Te amo.

Na verdade me surpreendia o quão bem conseguíamos lidar com a distância. Fazíamos chamadas de vídeo com uma frequência impressionante, sempre trocávamos mensagens, comentávamos os detalhes de nossos dias... Além de termos ganhado bastante experiência com nudes e sexting.

A distância era dolorida e fria, triste quando toda noite me via sozinha em uma cama de casal. Mas tudo era interessante com Amélia. E tudo valia a pena por Amélia.

Lembrei de casais que conhecíamos que terminavam na semana do carnaval e voltavam na outra todo ano, dos filmes em que nada dá certo e nos seriados da televisão que sempre acabam em tragédia. E então reparava em nós, era até estranho como tudo funcionava. Parecia que estávamos em um daqueles filmes que passam na Sessão da Tarde e fazem as pessoas dormirem na metade porque simplesmente não existem conflitos. Acho que não fariam um filme sobre Fiona e Amélia, ou um livro ou uma série. Acho que não escreveriam nem uma dessas historinhas de sites abertos sobre nós.

Apesar de tudo isso, as coisas esfriaram alguns meses depois. Amélia estava cada vez mais afundada em sua tese de mestrado e em reuniões com sua orientadora e eu me demiti da livraria assim que minhas horas de estágio foram completas e consegui um trabalho em uma editora. Não fazia nada de muito interessante mas ele ocupava mais horas do meu dia. Além disso, precisava terminar meu trabalho de conclusão de curso para me formar na faculdade.

Amélia terminou comigo quatro meses depois de chegar na Itália.

Não foi uma grande surpresa, apenas devastadora. Combinamos, no entanto, de continuarmos trocando mensagens. "Amizade" foi a palavra que ela usou quando enfiou uma adaga nas minhas costas.

Eu entendi e até concordei com a decisão que, apesar de partir dela e me atingir como uma pedra na cabeça, terminou mútua. Estávamos mesmo distantes, tendo sempre as mesmas curtas conversas de elevador toda semana. Não significava que nos amávamos menos.

Nossos dias estavam abarrotados de estresse e, no final, não sobrava muito tempo para nos comprometermos uma à outra. Especialmente à distância.

Ela ia voltar para o Brasil eventualmente e nós iríamos nos reencontrar. Era melhor terminarmos agora, sabendo que a única coisa que nos separou foi a distância, do que esperar nossa relação desfalecer lenta e realmente.

Foi o que repeti para mim mesma até o dia que recebi uma notificação. Amélia havia postado uma foto. Abri a rede social esperando mais uma selfie em um museu, um prato de espaguete ou um retrato da arquitetura tocado pelo sol. Não era nada disso. Era uma foto de Amélia com uma moça de cabelos compridos e lisos, pintados de vermelho. As duas apareciam de braços entrelaçados e sorriam para a câmera. A legenda só continha emojis mas, claro, entrei no perfil da mulher e vi que ela havia publicado a mesma fotografia.

"Il miglior amore che potessi avere."

Bloqueei a tela do celular e cuidadosamente o coloquei sobre a mesa de cabeceira.

Minha cabeça não conseguia se concentrar em um só pensamento ou seguir uma linha de raciocínio, meu coração não conseguia focar em uma só emoção ou se controlar... Senti sem saber o que estava sentindo, um furacão silencioso de dentro para fora.

Nossas vidas haviam mudado muito nos últimos meses. Ela na Itália com outras pessoas, outra rotina e outra cultura; eu aqui em um novo emprego, com menos aulas no último semestre da faculdade e novas ambições. Minha vida havia mudado e eu também. Me sentia mais confiante do que há um ano, mais amada, mais amável... Mais competente e mais inteligente. Eu colocava a culpa de todas essas coisas boas em Amélia mas achava um pensamento meio estúpido também. Amélia foi um empurrão necessário para que me enxergasse de outra forma. Não a causa, mas um detalhe existencial que me fez conseguir ver a vida por uma nova perspectiva.

Eu fui a agente da minha mudança, não Amélia. Mas eu queria ela ao meu lado enquanto mudava.

Me olhei no espelho e não reconheci a pessoa que pensava ser. Parecia mais adulta, mais alerta e responsável como se, depois de todos esses anos vivendo uma vida independente em São Paulo estivesse finalmente consciente de que meu destino está em minhas mãos.

Finalmente percebi o que tanto me incomodava: tantas mudanças no interior e nenhuma por fora. Peguei minha bolsa e as chaves e saí do apartamento enquanto lembrava de Amélia comentando suas aventuras adolescentes e de como fazia mudanças bruscas no cabelo, com cortes ou tinta, quando queria algo diferente da vida. "A mudança física impulsionava a abstrata", ela disse.

Não sabia o que queria fazer quando sentei na cadeira do salão. Fiquei as últimas semanas apegada na memória de um relacionamento que não existia mais. Precisava aceitar que Amélia não era mais minha Amélia e que, na verdade, ninguém é de ninguém. Precisava reaprender a ser sozinha e encontrar um modo da minha solitude não se tornar minha solidão. Eu queria ser eu, não alguém com medo de simplesmente ser -como era antes dela.

Também não procurava resgatar a Fiona que era antes de Amélia, mas me reconstruir como um ser que é só, independente. Eu não sabia quem eu era nem sabia se era possível esclarecer. Alguém sabe quem é? 

Queria estar com alguém por querer e não por uma necessidade patológica consequente do medo da solidão e, mais importante, queria poder estar com Amélia. Quem é Fiona sem Amélia? Eu precisava descobrir.

Olhei em volta quando a cabeleireira me perguntou o que eu queria, pousando meu olhar em um dos assistentes do local que tinha os fios curtos, com as laterais raspadas e a franja caindo levemente sobre a testa.

Me senti um pouco louca quando vi a mulher finalmente passar a tesoura e amarrar os quinze centímetros de fios em um elástico. Não tinha como voltar atrás mas eu não conseguia parar de sorrir, um pouco aflita com a nova descoberta de que talvez tivesse gostado um pouco demais da adrenalina de mudar tão drasticamente.

Quando tudo terminou e me olhei no espelho consegui, finalmente, me enxergar.

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