Capítulo 10

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Fechei o porta malas e entrei no carro, Amélia já esperava no banco ao meu lado. Ligou o rádio e, por ironia ou sadismo do universo, a estação tocava As Canções Que Você Fez Para Mim. A ida para o apartamento foi silenciosa até demais, só a música continuou tocando. Durante os anos longe nós nos acostumamos a pequenas conversas mas agora parecia que tínhamos muito para dizer mas nada conseguia se verbalizar.

Achei engraçado que a capacidade de nos lermos não havia se perdido. Ela sabia, eu sabia que ela sabia, ela sabia que eu sabia que ela sabia... E então ficamos em silêncio.

Amélia subiu as escadas carregando com dificuldade uma de suas gigantes malas, eu segui atrás com outra em mãos. Mais uma viagem para enfim retirarmos do carro toda sua bagagem. Era estranho ter Amélia aqui, tão perto. Estava acostumada a vê-la em seu apartamento de anos atrás, ou no meu com Marina e Daniel, ou pela tela do celular... Mas não aqui.

Já fazia um tempo que eu morava sozinha em São Paulo. Eu, minhas plantas e Nala. Mais uma coisa que mudou drasticamente nos últimos anos: sou capaz de manter plantas vivas por mais de uma semana. E uma gatinha. 

Ela olhou em volta, curiosa, tentando capturar cada detalhe do apartamento. A estante cheia de livros, os vasos na mesa de centro, o design das lâmpadas e a cor das paredes. Caminhou pelo local ainda sem muitas palavras, absorvendo a pia clara do banheiro e os desenhos no azulejo, o piso de madeira do corredor e a maçaneta do único quarto do imóvel. Abriu a porta, se deparando com um cômodo grande que abrigava minha cama de casal, um armário, algumas prateleiras e uma escrivaninha. Um edredom grená florido cobria o colchão e por um momento, observando Amélia olhar em volta, a cama me pareceu mais confortável e convidativa do que nunca.

-É a sua cara -ela disse.

-Acho que sim.

Me sentei na cama, ela se sentou ao meu lado. Respirações pesadas, nossas mãos próximas demais sobre o colchão. Pensei no que dizer, como começar... Poderia apenas contar mais detalhes, fingir que estava mesmo reencontrando alguém distante, tornar nossas conversas de elevador um pouco mais longas e deixar o tempo fazer o resto. Mas isso não parecia certo, nós já havíamos ficado longe por tempo demais.

Dane-se todo o mundo, eu ia me inclinar naquele mesmo momento e beijá-la, deixar que minha língua a diga o quanto senti sua falta, mas sem palavra alguma.

Hesitei, e se for o momento errado? Gosto de pensar que a conheço mas se passaram muitos anos, será que ela mudou tão drasticamente quanto eu? Não queria arriscar perdê-la. Não queria arriscar nada e não exagero quando digo que nos últimos anos, mesmo com tantas mudanças, aqueles segundos em que nos sentamos lado a lado na cama em silêncio foram os mais ansiosos da minha existência.

Estava imersa em minhas próprias reflexões e, quando me vi prestes a finalmente abrir a boca, um soluço me interrompeu. Virei meu olhar na direção de Amélia, me deparando com o rastro de lágrimas silenciosas que já haviam atravessado seu rosto antes que eu percebesse que estava chorando. Ela riu, ainda com os olhos molhados. Tinha a atenção virada para baixo, observando como Nala se alinhava em seus pés, se aconchegando nos sapatos. Não soube distinguir se a expressão de Amélia era triste ou feliz, talvez uma mistura dos dois.

Ela esticou os braços para pegar a gatinha com cuidado e a colocar no colo, limpou as lágrimas e focou suas energias no cafuné que havia esperado cinco anos para entregar à Nala. Me senti um pouco traída pela gata que, apesar de me acompanhar todos os dias, pareceu se apaixonar por Amélia tão rapidamente quanto eu me apaixonei.

Segui quieta.

-Eu senti muito a sua falta -Amélia disse, finalmente, ainda sorrindo e com os olhos marejados.

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