Abri meus olhos devagar, sentindo toda a ardência da luz que entrava pela janela calmamente. Peguei o celular, desbloqueei a tela e lá estava o sorriso mais extraordinário de São Paulo, tão único mesmo que só por uma foto de perfil.
Reli todas as mensagens que havíamos trocado no dia seguinte à reunião, desde o começo da manhã até o fim da noite. Passei minha viagem até a rodoviária, e então a jornada até a cidade grande, teclando com os dedos, contando como meu pai havia se despedido de mim com um abraço silencioso, narrando a briga fervorosa de um casal no ônibus, passando pelas músicas que havia escolhido ouvir e pelos meus planos para a próxima semana.
Fiona: Bom dia. Tudo bem?
Era segunda-feira. Não obtive uma resposta instantânea, então coloquei o celular de volta na mesa de cabeceira e levantei da cama. O café já estava pronto, conseguia sentir o cheiro e obviamente Marina teria acordado antes de mim, ela sempre fazia isso. Sentia que meu cabelo estava horrorosamente bagunçado sem nem tocá-lo, mas o café era minha prioridade.
Como previsto, Marina estava no sofá com Daniel, seu namorado, e nossa convivência já era tão comum que nenhum dos dois ligava mais quando eu aparecia na sala como um zumbi de camiseta e calcinha. A livraria onde estagiava não abria às segundas mas eu ainda tinha algumas aulas pela manhã. Coloquei um pouco do café na xícara e me apoiei no balcão, tentando entender qual era esse tipo de jovem adulto que sente prazer em assistir jornal tão cedo.
-Como foi seu fim de semana? Sobreviveu? -Marina perguntou.
-Por pouco -respondi, cansada da viagem mas logo abrindo um sorriso ao me lembrar de Amélia.
Terminei o café, voltei para o quarto, estava terminando de arrumar as coisas para tomar um banho quando meu celular apitou.
Amélia: Bom dia. Estou bem, e você?
Fiona: Bem também.
Amélia: O que vai fazer hoje?
Fiona: Absolutamente nada.
Amélia: Vou até uma mostra de cinema no centro, quer ir?
Olhei para a mensagem por alguns segundos deixando minha ansiedade agir e transformar meu cérebro em seu universo pessoal. Ela estava me chamando para sair, uma amizade, só uma amizade, a não ser que não fosse. Repassei todos os nossos diálogos e cheguei à conclusão de que minhas respostas não tinham sido tão especiais quanto as dela. Amélia estava alguns níveis acima do meu. Ainda assim, sendo quem sou, respondi:
Fiona: Claro! Onde nos encontramos?
Puxei meu shorts um pouco para baixo enquanto esperava Amélia na estação do metrô. Não conseguia parar quieta, ou fuçava desesperadamente minhas redes sociais, ou ficava balançando os pés, ou mexendo no cabelo. Ajeitei a mochila nas costas, aguentando o peso dos livros que havia trazido da faculdade. Quando ela finalmente chegou eu já estava raspando os restos de esmalte das unhas, mas posso garantir que a espera valeu a pena. Amélia estava com um vestido amarelo sem mangas, usando várias bijuterias, como sempre. Ela sorriu quando me cumprimentou e eu não pude evitar sorrir também.
Fomos caminhando até a mostra, retiramos nossos ingressos na bilheteria improvisada e logo nos ajeitamos na sala aconchegante com várias almofadas no chão. O filme que Amélia escolheu era em preto e branco, Mädchen in Uniform, de 1931, dirigido por Leontine Sagan, considerado o primeiro filme de temática lésbica do cinema, explicou a educadora do museu, lançado na Alemanha nas vésperas da ascensão do nazismo. Senti a mão de Amélia se aproximar da minha quando a personagem de Dorothea Wieck disse uma de suas falas:
O que você chama de pecado,
eu chamo de 'o grande espírito do amor',
que pode ter múltiplas formas.Não segurou minha mão, apenas repousou ao meu lado, fazendo com que nossas peles se tocassem levemente com um de seus dedos sobre um dos meus. Essa coisa de pele com pele sempre me atingiu como um tiro ou um choque, prendi a respiração por alguns milésimos de segundo e vi esse pequeno acontecimento embaralhar minha cabeça inteira. Amélia continuou parada quando os créditos começaram a subir na tela, mas não sabia se era porque estava aproveitando nossos segundos juntas como eu. Na verdade, eu nunca sabia, não conseguia ler as intenções das outras pessoas tão bem quanto gostaria, pelo menos não quando havia um maior interesse, porque aí ficava tudo uma bagunça e eu não sabia como agir.
Os créditos apareceram, ouvi Amélia suspirar e então começar a se mexer para se levantar, fiz o mesmo. Perguntei se ela tinha gostado do filme e ela disse que sim, que amou. E foi isso. Pegamos o metrô no mesmo sentido e fomos conversando sobre cinema e como o estilo de narrativa havia mudado daquela época para hoje. Antes que eu pudesse expressar meu desejo de me afundar em seus olhos a estação dela chegou, ela me deu um beijo na bochecha e saiu do trem rumo à linha azul. E a mim só restou respirar fundo, frustrada, olhar para cima e perguntar:
-Por quê?
___
Vote. Comente. Compartilhe.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Tons de Violeta
RomanceEu tinha quinze anos quando vi Amélia pela primeira vez. Vinte e dois quando a conheci realmente. Nem um mês a mais quando me apaixonei. Ela era única, brilhante, inabalável, muito diferente de mim... "Tons de Violeta" é um curto romance sáfico que...