Não sabia direito o que vestir, era uma festa de reencontro do ensino médio, uma péssima fase da vida. Um péssimo convite para se aceitar. Depois de alguns minutos, parei de encarar o guarda roupas sem realmente ser proativa sobre meus pensamentos e vestir uma calça jeans e uma camiseta. Só haviam se passado cinco anos, as pessoas não devem ter mudado tanto assim.
Entrei no táxi me repreendendo por estar atrasada mais uma vez, o carro balançava muito pelas ruas esburacadas de Ribeirão Preto, mas consegui um farol vermelho para terminar a maquiagem. Leve, só para parecer que eu queria estar lá.
Quando cheguei à escola vi que continuava a mesma e então me perguntei o que é que eu estava fazendo ali. Não soube me responder, ainda assim subi as escadas e dei meu nome à secretária, que por sua vez me mandou seguir pelo corredor até as quadras, onde o evento estava acontecendo. Respirei fundo várias vezes durante o curto percurso, me recordando das vezes que fui parar na sala da diretoria injustamente. A curiosidade é uma força avassaladora.
Os únicos amigos que mantiveram contato comigo depois desses três anos deploráveis me juraram que estariam aqui hoje, mas sempre tenho meu pé um pouco atrás e um sexto sentido que funciona muito bem.
Ao entrar nas quadras vi professores conhecidos mas que eu não gostava muito, ex-alunos que eu não tinha interesse de conhecer na época da escola e muito menos agora, e algumas pessoas que eu lembro de serem amigáveis mas também distantes. Nem sombra dos meus ditos amigos mas o atraso deles pode apenas ter sido maior do que o meu.
Me sentei em uma das mesas vazias, todas elas tinham uma decoração dourada, uma toalha brilhante com um enfeite no centro. Pendurei a bolsa na cadeira de plástico e peguei meu celular, a fuga de qualquer aparência constrangedora. Rolei a tela que não me dizia nada por longos minutos até ver um vulto se aproximando de mim, levantei a cabeça esperando meus amigos mas tudo o que vi foi uma figura feminina de cabelos claros e longos.
-Posso me sentar aqui?
Demorei para responder.
-Pode sim -minha voz embargou.
-Eu lembro de você mas o nome não me vem à cabeça -ela resolveu puxar assunto mas minha introversão ainda não tinha decidido se eu queria conversar. Talvez ela fosse mais um objeto da minha estranha curiosidade: feito para ser observado de longe.
Eu sabia que não me aproximava por medo, mas tinha que tentar inventar outras desculpas.
-Fiona.
-Amélia -ela tinha mudado.
-Você está... diferente.
-Acho que eu chamava mais atenção nos tempos da escola -ela respondeu.
-Acho que chamaria de qualquer jeito -vi seu sorriso abrir e não pude evitar sorrir também.
Conversamos por mais algumas dezenas de minuto até eu aceitar que meus amigos não apareceriam e que tudo bem se eles não viessem porque eu tinha comigo uma mulher simpática e divertida. Parte de mim não acreditava que estava finalmente falando com ela, a outra se confortava com o quão à vontade ela havia me deixado em um ambiente onde eu estaria muito provavelmente me encolhendo em qualquer outro cenário. Amélia era mais forte que eu, mais forte que meus medos.
Vendo que naquela confraternização não teríamos mais nenhuma companhia, fomos para a padaria do outro lado da rua, que não tinha um cardápio restrito à cachorros quentes. Sentamos numa mesinha perto da janela, de onde conseguíamos ver a rua, os carros passando e os faróis alternando do vermelho ao verde, dando um brilho diferente à faixa de pedestres molhada pela chuva que tinha caído naquela tarde.
Amélia estudava ciências biológicas e queria lecionar. O mundo dá voltas. Eu, que sempre gostei de artes, acabei em administração e depois migrei para letras, onde estou até agora, também sem muita motivação. Queria tropeçar e cair na formatura mas não é assim que a banda toca. Ela sempre gostou de dançar, contou enquanto eu fingia não lembrar de seus rodopios. Algumas crianças tiravam uma com a cara dela mas eu sempre achei o máximo que conseguisse fazer o que fazia. Contou também que apesar de ensaiar tanto não conseguiu a bolsa para a escola de ballet que a levaria ao Festival de Dança de Joinville.
Linda e extravagante, não parecia ter medo de nada e era sempre verdadeira. Ainda é, com seu sorriso radiante, tão fácil de conseguir. Os olhos castanhos sorriam junto. Era alta, mais alta que eu, pelo menos, com uma pele bronzeada como quem passou alguns dias na praia no verão passado. O cabelo volumoso e encaracolado ia até o meio das costas e ela usava muitas bijuterias. Contou que morava sozinha num apartamento em São Paulo e que havia se mudado recentemente, que amava macarrão com queijo e que sua cor favorita era azul.
Meu coração bateu mais forte, visto que eu também havia me livrado de Ribeirão para a cidade grande. Ao contrário dela, dividia o apartamento com uma colega, Marina. Nós não passávamos muito tempo juntas por causa do horário das nossas rotinas, mas eu a considerava uma amiga e ela me aturava sem pestanejar. Sempre achei que o vermelho, em tons de vinho e grená, combinava com os fios escuros do meu cabelo e davam cor à minha pele pálida, com o tempo se tornou minha, colorindo uma diversidade de objetos como uma marca registrada, como o batom que usava naquela noite e a mochila que carregava todos os dias a caminho da universidade.
Falamos sobre nossos filmes favoritos e estilos musicais, ela disse que gostava de ficção científica e eu expliquei que era mais fã dos romances. Disse que foi no Rock in Rio com os amigos e eu contei o que senti vendo Lana Del Rey cantar na televisão. Conversei mais com Amélia em algumas horas do que havia feito com meus pais em um fim de semana inteiro.
Ao final da noite já havíamos compartilhado toda nossa vida em detalhes e, antes de nos despedirmos, trocamos telefones. Pedi para que me avisasse quando chegasse em casa e disse que faria o mesmo. Ainda assim, irresponsavelmente, me joguei na cama logo que passei pela porta e, ainda me perguntando se tudo aquilo havia mesmo acontecido, me afundei em mais um de meus sonos profundos.
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Tons de Violeta
RomanceEu tinha quinze anos quando vi Amélia pela primeira vez. Vinte e dois quando a conheci realmente. Nem um mês a mais quando me apaixonei. Ela era única, brilhante, inabalável, muito diferente de mim... "Tons de Violeta" é um curto romance sáfico que...