Epílogo

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Coloquei as velas no bolo, primeiro o quatro e depois o zero. Sempre me imaginei fazendo uma careta para o número mas olhando em volta só consegui me encher de realização e felicidade.

Amélia terminava de arrumar as mesas no jardim, uma toalha verde e um vaso de enfeite no centro. A imagem me lembrou vagamente a noite em que trocamos nossas primeiras palavras, mas a nossa decoração estava muito mais bonita.

Meu aniversário caiu no mesmo dia da filha de Marina e Daniel, ou melhor dizendo, o aniversário dela caiu no mesmo dia do meu. Enquanto eu amava me desviar das festas, ela se embebedava com as celebrações em sua homenagem, então Amélia e Marina -em um complô fenomenal -criaram esse grande evento anual onde comemoramos todas juntas. A atenção não se coloca inteiramente em mim -o que é ótimo -e Cléo tem o nosso jardim como salão de festas.

Claro, eu daria para ela de qualquer jeito, daria tudo para ela, eu e Amélia somos ótimas madrinhas. Pipoca de café da manhã, bolo de chocolate de jantar. Somos adoradas e podemos mimá-la o quanto quisermos.

Vi Daniel me olhar feio enquanto passava um brigadeiro escondido para a menina, mas dei de ombros com um sorriso. Eu posso, ele não. Queria aproveitar cada momento com Cléo antes de sua transformação em uma adolescente rebelde.

Os balões presos na entrada balançavam cada vez que um de seus colegas de classe passava correndo pela porta para se desvencilhar logo dos pais que seguiam logo atrás sempre atentos. Tínhamos dois bolos mas a verdade é que eu não tinha muitos conhecidos no salão. Nem no jardim da minha própria casa. Era melhor assim, podia relaxar e só aparecer na hora de ascender as velas.

Passei pelas pessoas e subi as escadas para nossa casa, sempre me imaginei pulando de um apartamento para o outro mas esse lugar era o paraíso. O nosso paraíso particular.

Observei as estantes de livros, os diplomas na parede, de doutorado de Amélia e do meu mestrado (pois é, isso aconteceu mas a verdade é que só o conclui para saber que podia), o material para correção em cima da mesa rodeando o vaso que abrigava as rosas vermelhas que ganhei ao acordar. Tudo feito por nós.

Temos cerâmicas coloridas, louças brancas com detalhes em azul, panos de prato com desenhos minimalistas, quadros assinados pendurados nas paredes. Tenho orgulho da vida que construímos juntas, do espaço que decoramos para chamar de nosso. Esperamos até juntarmos dinheiro para conseguirmos fazer tudo perfeito, não deixamos nada para depois.

Damos aula na mesma universidade no interior de São Paulo, temos uma casa aberta com grandes janelas e nenhum prédio por perto para interromper a luz do sol. Sinto que estou vivendo um sonho todo dia que acordo de manhã e me levanto para preparar o café -nunca antes de me virar e a acordar com um cafuné. Os cachos loiros de Amélia ainda são meus preferidos e o cheiro deles só parece melhorar conforme os anos se passam.

E décadas se passaram. Continuamos Fiona e Amélia.

Planejamos alugar um quarto em um lar de idosos e decidirmos por lá mesmo se faremos com que os cuidadores nos amem ou temam. Mas isso só se passarmos muito do nosso tempo, eu adoraria morrer nessa casa, regada pelo sol e rodeada pelas minhas plantas e por Amélia. Ela me fez prometer que deixaria ela morrer primeiro, só concordei depois de muita insistência e porque sei que desde jovem sou melancólica demais para saber lidar com a dor da perda. E porque faço tudo por ela.

Tudo bem, acho que isso ficou muito mórbido muito rápido. Vamos voltar.

Reguei as plantas da sacada, tinha esquecido de dar água a elas de manhã. Podia ver mais convidados chegando e atravessando o gramado de lá, cumprimentando Cléo com longos abraços e partindo para falar com Marina e Daniel. Fiquei ali por um tempo, apenas observando e sentindo o cheiro da terra molhada.

Ouvi passos se aproximando e sorri já sabendo de quem eram. Nós aprendemos a reconhecer depois de tanto tempo juntas. Os braços de Amélia rodearam minha cintura enquanto ela se inclinou para beijar meu ombro e afagar meu cabelo.

-Podemos só ficar aqui se você quiser.

-Você sabe que não pode me oferecer isso -eu disse e ela riu.

-Também sei que você gosta dessa sua imagem de eremita mas prefere mil vezes essa festinha de criança do que os nossos jantares solitários dos últimos anos.

-Não eram solitários...

-Estavam começando a ficar um pouco deprimentes.

-Tudo bem, eu me rendo.

-Mas podemos descer só quando a festa estiver caminhando para o seu fim...

-Amélia...

-Sim?

-Está insistindo muito nessa ideia que normalmente só partiria de mim. Quais são seus planos?

-Te levar para o quarto e tirar a sua roupa.

Sorri, apertando mais seus braços a minha volta. Era um ótimo plano.

E ela sempre foi ótima em transformar desejos em realidades.

Amélia se desvencilhou do vestido que usava revelando uma lingerie preta, ela planejou esse momento. Meus olhos não conseguiam se desviar dela em uma das formas mais sensuais que já a havia visto. Sigo não concordando com a acusação de ser uma pessoa exagerada, mas eu penso nisso quase todas as vezes que a vejo... Mesmo a vendo todos os dias.

Eu não achei que aconteceria comigo mas vejam só, nossa paixão durou anos a fio. Ríamos assistindo aos mesmos filmes, comentávamos avidamente sobre os livros que líamos e sobre as discussões que propúnhamos em aula e a que fim levavam, opinávamos sobre tudo e até nossas brigas me faziam amá-la. Nossa rotina, até quando parecia entediante aos espectadores, nos parecia como um sonho e um objetivo alcançado. Nossa simplicidade nos era perfeita.

Confiante, me olhou de uma maneira que fez com que meus pelos se arrepiassem. Os seios fartos cobertos pela renda escura, os cachos dourados caindo pelos ombros... Tentei gravar na mente cada mínimo detalhe para que pudesse retornar a esse momento quando quisesse. Ela me beijou, se inclinando sobre mim na cama, podia senti-la entre minhas pernas. Queria viver nesse momento para sempre.

E eu mal podia esperar para descobrir o que ela faria a seguir.

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Fim.

Tons de Violeta Onde histórias criam vida. Descubra agora