Capítulo 9

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Estiquei o braço o máximo que pude, segurando o celular para tirar uma foto que enquadrasse Gabriela e o trio elétrico atrás de nós. Apertei o botão e aproximei o rosto da tela, tampando o sol com as mãos para tentar enxergar a imagem. A primeira ficou tremida, a segunda funcionou. Abri os contatos e cliquei no nome de Amélia, enviando a fotografia em tempo real.

Ela respondeu cinco minutos depois com uma foto dela com Pietra -a mulher que ainda tinha os cabelos longos e vermelhos perfeitamente arrumados toda vez que aparecia -na Parada do Orgulho de Roma. Sempre fazíamos isso, era um dia especial.

Amélia não retornou ao Brasil depois dos dois anos de mestrado. Trocávamos mensagens usualmente, em datas especiais como ano novo, natal, aniversários e, claro, no Dia do Orgulho. Compartilhávamos as grandes notícias como mudanças de emprego, promoções e datas de formatura... Marina e Daniel se casaram, fizemos uma chamada de vídeo na cerimônia. Mas não falávamos tanto sobre acontecimentos rotineiros nem nos contatávamos todos os dias ou todas as semanas. Eu e Amélia nos tratávamos como velhas amigas, distantes mas presentes. Éramos família. Bom, quase.

Gabriela não era exatamente uma namorada, nós saíamos bastante, conversávamos e nos beijávamos ainda mais mas não haviam rótulos. A adorava mas não era forte como foi com Amélia. Ela estava de acordo, também não procurava um relacionamento sério. Não significava que não nos importávamos uma com a outra ou que não tínhamos uma conexão ou momentos especiais e carinhosos, mas tirava de mim a leve culpa que senti quando começamos a nos aproximar -a culpa de não conseguir me apaixonar tão perdidamente como com Amélia.

Elas eram diferentes em muitos sentidos. Gabriela era uma mulher urbana, uma pessoa noturna. As baladas da madrugada não me encantavam tanto assim, ainda mais se tinha que trabalhar no dia seguinte -tentamos uma vez para nunca mais, achei que fosse morrer logo no café da manhã. Mas ela também era vívida, alegre, energética. Boas características que acho que me complementaram muito bem enquanto estávamos juntas. Eu e Gabriela nos balanceávamos. Era carinhosa, aconchegante e calorosa quando estávamos em casa; feroz, impulsiva, elétrica quando estávamos fora.

Com certeza fariam um filme sobre Gabriela. 

Mas quando imaginava meu futuro, assim, de vez em quando, ainda insistia em imaginar Amélia. 

Fui demitida da editora, corte de gastos. Fiquei desempregada por dois meses enquanto agradecia a cada minuto por ter economizado uma porcentagem de meu salário durante todo o tempo que trabalhei lá. As opções eram muitas mas parecia que para todas as vagas sempre havia alguém mais qualificado. Eu não me especializei nem fiz nenhum curso depois da graduação, havia decidido que o ambiente universitário -assim como o escolar -não me serviam. Nunca gostei de estudar nem me senti motivada para isso e acho que parte de mim, mesmo depois de todos esses anos, ainda repetia a tensão que senti como aluna em meu subconsciente ao ponto de me retrair toda vez que via uma criança uniformizada ou passava em frente a um colégio. Motivo pelo qual nunca procurei vagas para lecionar.

Foi Gabriela quem me incentivou a tentar. Claro, a necessidade de pagar as contas também, mas acho que não teria ido sem ela. Ainda assim, me permiti ser um pouco egoísta, me candidatando apenas às vagas de mestres em literatura -odiava gramática. Talvez o ambiente escolar não fosse tão ruim do outro lado e talvez -foi esse talvez que me impulsionou mais ainda -eu poderia fazer com que as pessoas sentadas nas carteiras do outro lado tivessem um momento de alívio ou uma história melhor do que a minha. 

O primeiro dia de aula foi uma pilha de nervos mas os alunos foram gentis. Me sinto na obrigação de confessar que tinha um preconceito com adolescentes mas acontece que eles podem ser muito surpreendentes.

Sorte, eu acho.

Amélia custou a acreditar na minha nova escolha de carreira, consciente da minha aversão pelo colegial, mas, contra todas as chances, consegui me acostumar rapidamente com a rotina da escola e então, mais surpreendentemente do que a boa vontade dos adolescentes, tomei gosto pelo ensino.

Passei a preparar minhas aulas com mais vontade, conectando as narrativas dos clássicos da literatura brasileira com a rotina do século XXI e as vidas dos alunos, tentando ressaltar não só a importância dos livros mas seus pontos interessantes que têm o poder de cativá-los e propondo debates sobre as histórias.

Me sentia satisfeita quando as discussões se tornavam calorosas, com alunos falando alto e claro, saindo em defesa de personagens ou condenando autores. Fervorosamente, me sentia revigorada ao perceber que as alunas de hoje não têm medo de expressar suas opiniões.

Meu relacionamento com Gabriela terminou alguns meses depois, não conseguíamos nos ver por muito tempo com minha nova rotina. Foi um pouco frustrante, como um padrão repetido: elas não me deixam porque não funcionamos juntas, me deixam porque a vida entra no caminho. Depois de nos afastarmos, considerei que talvez eu amasse Gabriela mais do que imaginava. Com o coração partido pela segunda vez, fiquei um tempo sozinha. Bastante tempo. Talvez tempo demais.


Recebi uma ligação cinco anos após a partida de Amélia:

-Oi!

-Oi -respondi.

-Desculpa te ligar assim do nada, mas...

-Não, tudo bem.

-Meu irmão acabou de me ligar dizendo que ficou preso no trabalho e não vai conseguir me buscar no aeroporto e eu queria saber se... -parou de falar.

-Se?

-Se você pode me buscar...

-Você vai voltar?

-Era pra ser uma surpresa -prendi a respiração por alguns segundos.

-Entendi.

Uma pausa.

-Então? -ela perguntou.

-Sim, posso sim, -falei -só me dizer o horário.

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