Capítulo I : A V I A G E M

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    - Onde é que você tá com a cabeça? – Marcos andava de um lado para o outro no quarto do filho, raspando os dentes na bochecha e sacudindo a cabeça. – Eu te dou comida, casa, uma cama pra dormir e você bota vagabundo aqui dentro? Eu tive um MACHO, Gustavo, não criei um mariquinha.

    O garoto mantinha o olhar fixo na porta de madeira do armário em sua frente, imóvel. As lágrimas que se acumulavam atrapalhavam um tanto a nitidez da visão, mas eram solenemente ignoradas enquanto as unhas curtas travavam uma luta discreta com o lençol.

   - Tu tá me escutando rapaz? Se eu pegar outra bixinha dentro dessa casa eu te quebro. Tô falando sério. Tua sorte é que tuas irmãs estavam fora... O que é que elas iam pensar?

   Os olhos, geralmente esverdeados, estavam escurecidos e Gustavo sentia a garganta doer pra engolir enquanto concordava com a cabeça. Marcos parou em frente ao filho, tirando os óculos e limpando na camiseta antes de tirar o suor que escorria da testa.

   - Eu só quero o melhor pra você, garoto. - deixa a mão descansar no ombro do filho. Gustavo puxou o ar com tanta força pelo susto que pensou que fosse desmaiar. – Essas bixas da internet confundem sua cabeça. Tu vai me agradecer por isso depois. – concluiu com dois tapinhas na bochecha dele antes de deixar o quarto, abandonando Gustavo ainda com o olhar fixo na porta do guarda-roupa.

   Assim que se viu só, o primeiro soluço saiu, e então o choro ficou impossível de ser contido. Porém durou pouco, ele tinha muito o que planejar se quisesse mesmo se livrar daquele velho. Respirou fundo e se levantou da cama, correu rapidamente na ponta dos pés até a porta e colocou a cabeça para fora, conferindo se o corredor estava livre antes de fechá-la. Trancou-a por precaução.

   Mais uma vez se obrigou a limpar as lágrimas que teimavam em escorrer e se pôs a fazer cálculos. Mais seis meses de trabalho naquela loja de discos velha e seria o suficiente para um pé de meia razoável. Seis meses. S e i s m e s e s repetiu para si até dormir.

   O dia seguinte parecia não chegar nunca. Gustavo acordou três vezes de madrugada, porém durante o café tudo parecia normal. Marcos estava na ponta da mesa como de costume, fazendo comentários inúteis sobre o café preto na xicara com o rosto de algum político velho de 2013 estampado nela. Gustavo engoliu o pão na chapa e se levantou apressado.

   - Até mais tarde. –Soprou baixo antes de dar as costas e descer as escadas do terceiro começando a andar, virando na rua Barata Ribeiro.

   Trabalhar na Garimpo Discos não era lá a melhor coisa do mundo, não tinha o melhor salário e nem o melhor chefe mas qualquer coisa valia apena no momento.

-Bom dia Seu Simão.

-Aqui você não entra, viadinho. Boiola não trabalha na minha loja.

  Ah, havia esse pequeno detalhe. Seu pai e seu Simão eram bons amigos... quais as chances da notícia ter corrido rápido demais?

- Rala bixinha, tu não trabalha mais aqui, vai espantar meus clientes.

- Espera, o senhor pode me escutar por favor?

- Já falei: r a l a. Se eu quisesse contratar mulherzinha, ia atrás de uma gostosa!

- Eu preciso muito do dinheiro, Seu Simão. É importante...

- O problema é seu, não trabalho com viado.

- É só por uns meses.

- Vaza antes que eu quebre sua cara.

   Gustavo engoliu em seco mais uma vez, levando a mão para a franja bagunçada e ajeitando a mochila surrada no ombro.

- Tá, tanto faz. – saiu pela porta de vidro enquanto o velho Simão continuava gritando coisas que ele preferiu não ouvir. Demorou algum tempo pra que ele assimilasse que seu pai tenha se dado ao trabalho de fazer aquele telefonema. Quanto ódio era necessário para isso?

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