Capítulo 3

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Sete anos atrás.

A perna de Kaden estava em chamas. Literalmente, em chamas. Ele corria o mais rápido que podia, praguejando enquanto tentava, sem muito sucesso, apagar o fogo que se agarrava às suas calças maltrapilhas.
As ruas estavam abarrotadas. A festa da colheita se aproximava, de modo que todas as senhoras saiam as compras, buscando comprar os vestidos mais brilhantes e luxuosos que pudessem pagar, e todos os servos estavam em polvorosa à procura de carnes e legumes frescos, para o banquete vindouro. O fluxo de pessoas era tão intenso, que ninguém reparava quando um garotinho sujo, com labaredas saindo da perna, passava desajeitadamente entre eles.
Para sorte de Kaden, ele era pequeno e esguio o suficiente para passar facilmente entre as brechas da multidão. O que não era o caso da dezena de soldados da Guarda, que agora se espremiam desesperados e berravam ordens, inutilmente, à multidão barulhenta.
Pelo canto do olho, Kaden avistou o familiar uniforme azul e preto da Guarda Real. O soldado estava próximo, a menos de dez metros dele. O garoto engoliu em seco, e se preparou para o que viria a seguir. Ele diminuiu a velocidade, reparando bem no ambiente ao seu redor. Seus olhos azuis brilharam de antecipação, quando um plano começou a se formar em sua mente.
O soldado pareceu pressentir o que se passava na cabeça do garoto, porque estreitou os olhos e diminuiu suas passadas. Mesmo assim, não adiantou de nada. Quando Kaden lançou-se sobre a haste da maior barraca de tecidos — com todas as suas forças, e suplicando aos céus para que aquilo funcionasse —, ela tombou com todos os seus muitos tecidos e roupas sobre o homem, que apenas teve tempo de arregalar os olhos e soltar uma maldição, antes de ser soterrado pela montanha de seda brilhante.
Comerciantes e clientes berravam, entre a fúria e a consternação. Kaden teve a impressão de que a rua inteira se mobilizou para assistir ao espetáculo. O garoto nem sequer teve tempo de se virar para observar o fruto de seu trabalho. Apesar de ter ganho tempo, sabia que aquilo não impediria seus perseguidores por muito tempo. Ainda em movimento, ele envolveu a perna em chamas com um tecido ao alcance de suas mãos.
Agora a rua se estreitava até culminar em uma bifurcação. O caminho a esquerda levava diretamente ao seu esconderijo atual. Ele não demoraria mais que dez minutos para alcançá-lo. Era um prédio abandonado em ruínas, onde ele passava a maioria das noites. Não tinha nada mais que um colchonete velho e surrado, alguns objetos velhos — um colar enferrujado que encontrara no chão do mercado e uma caixa de madeira quebrada em que ele guardava seus poucos trocados e outras velharias pequenas. O que ele mais queria naquele instante, era correr para lá, e se ver logo livre da Guarda. Mas ele sabia que não seria tão fácil assim, e ele não podia levar os soldados até lá. Depois de entrar naquela rua, não havia como escapulir dali para qualquer outro lugar, além disso, ele se apegara demais ao lugar para abdicar dele. Sendo assim, sua única opção — e a direção que ele tomou — era a bifurcação da direita.
A estrada continuava em linha reta, sem nenhuma outra direção possível a ser tomada, por quase quinhentos metros. Casas muradas e de aparência moderna se erguiam dos dois lados da via. Depois de meio quilômetro elas rareavam, e a rua se estreitava até culminar na conhecida Ponte Glander. Aquele era o principal ponto de entrada para a cidade, e o mais utilizado por mercadores e transportadores de grandes mercadorias. A ponte era larga o suficiente para comportar dois veículos de cargas lado a lado, e forte o suficiente para aguentar o dobro disso talvez.
Kaden viu quando os soldados se agruparam às suas costas, e enquanto ele corria, previu exatamente o que se sucederia a seguir. Para uma criança de dez anos, o ladrãozinho tinha uma mente muito sagaz.
Cerca de dez deles o seguiam enquanto ele se aproximava da ponte. O rio era largo demais para atravessar a nado, e suas corredeiras eram conhecidas pela intensidade e velocidade mortais, então sua única opção era traspassá-la, rezando para não ser pego antes disso. A julgar pela distância entre ele e a Guarda, ele apostava em seu próprio sucesso. Quando deu o primeiro passo na ponte pavimentada seu sorriso foi de convencimento.
Seus pulmões já protestavam, depois de uma manhã tão agitada, mas ele continuou a correr, como se sua vida dependesse disso. E ela realmente dependia. Ele já estava na metade do percurso até a outra margem, quando arriscou uma olhadela por sobre o ombro. Seu coração errou uma batida quando ele viu os soldados se reunirem em uma linha horizontal, metros atrás. Nas mãos eles seguravam arcos longos, armados com flechas afiadas. Suas pontas prateadas e polidas brilharam refletindo a luz do sol.
— Pare onde está — a voz potente imponente do General Hashim chegou aos seus ouvidos — ou essas dez flechas vão ter seu peito como alvo.
Ele estacou. Não pôde fazer outra coisa. Ele sabia que Hashim falava a verdade. Já o vira lidar com ladrões que foram pegos antes. E ainda tinha pesadelos com isso.
Mas agora era real. Aquilo certamente não era um pesadelo. Ele estava numa enrascada. Kaden engoliu em seco. O General empurrou um dos arqueiros e passou à frente de seus soldados. Seus olhos azuis gélidos encontraram os do garoto. Seu uniforme engomado e seus distintivos o destacavam imediatamente, mas mesmo se eles não o fizessem aqueles olhos cheios de arrogância e autoridade o denunciariam como o líder ali.
— Bom — ele assentiu condescendente — Agora, quero que caminhe até aqui. Devagar, e sem fazer gracinhas.
Os olhos do garotinho faiscaram de modo desafiador, mas ele não se moveu. Seus instintos gritavam para ele o que todo ladrão sabia. Nenhum delinquente se aproxima da Guarda Real por vontade própria. Todos já sabiam onde isso acabava. Na forca.
Vinte metros — talvez um pouco mais — era o que os separava. Kaden fez as contas mentalmente. O ar estava favorável naquela manhã, e ele nunca tivera mais adrenalina correndo por suas veias do que agora. Sabia que não erraria. A menos que fosse atingido antes.
Sem escolhas, ele inspirou e expirou. E então, com uma agilidade precisa, ele puxou da bota sua velha adaga — a que ele roubara de um comerciante meses atrás, e não a sua favorita que permanecia segura na outra bota. E atirou. Ela cortou o ar com uma precisão perfeita. Ele abriu um sorriso quando a viu se aproximar cada vez mais do alvo. O General arregalou os olhos, e cambaleou assustado. Mas não foi o suficiente. A adaga se cravou em seu ombro direito, antes que alguém pudesse fazer qualquer coisa.
Os soldados ficaram paralisados. Em parte por causa do sangue, que jorrava em abundância do ombro do General — que agora grunhia de dor, caído de joelhos, enquanto apertava o ferimento com a mão esquerda. E em parte por causa da audácia suicida do pequeno ladrão, que agora piscava um dos olhos para eles, em provocação.
Eles levaram aproximadamente cinco segundos inteiros para se recuperar do choque. Quando finalmente retesaram seus arcos, prontos para fazerem do garoto uma almofada de agulhas, não havia ninguém para ser atingido.
Kaden olhou para as corredeiras ruidosas abaixo apenas uma vez. Fez uma curta prece ao céu, antes de subir no parapeito de cimento da ponte e — com os dentes trincados, e as mãos apertadas em punhos — saltar no Rio East-Ever.
Sem nada a fazer, os soldados apenas assistiram o garoto se lançar na queda mortal de quase vinte metros. Enquanto era socorrido pelos subordinados, Hashim praguejou e disse entredentes o que todos já estavam pensando.
— O garoto era maluco — foi o que praguejou — mas devo admitir que tinha coragem.

O Príncipe Dos Ladrões - Mirelly AlvesOnde histórias criam vida. Descubra agora