Capítulo 10

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Kaden se encolheu e gemeu com a dor que atravessou sua caixa torácica quando Hashim o jogou no meio da arena de luta.
Ele havia descoberto que o corte no peito necessitara de ser costurado, e agora cada um daqueles pontos pulsava e queimava sob as bandagens, sujando-as de sangue fresco.
Afinal, parecia mesmo que Hashim não o mataria. Ele não se daria tanto trabalho. Deixaria que outros fizessem aquilo por ele. Outros que agora se reuniam em um círculo ao redor da arena. Sorrisos lupinos largos e satisfeitos. Ansiosos.
Eles ficariam tremendamente satisfeitos em punir o ladrão que os fizera de tolos, que roubara uma espada milionária bem debaixo do nariz deles. E que ainda por cima, havia ferido impiedosamente a diversos de seus companheiros. O ladrão que por pouco não escapara por entre seus dedos.
Agora eles o fariam pagar. Pagar por tudo aquilo. Pagar por ser aquele lixo imprestável. Pagar por ser um órfão idiota, que não tinha onde cair morto. Pagar por sua ambição tola. Kaden merecia aquilo. Merecia tudo que fariam com ele. Mas não pelos motivos que todos aqueles soldados imaginavam.
Ele merecia aquilo por não ter previsto a chegada antes do tempo do Capitão. Merecia porque não tinham um plano reserva quando as coisas ficaram feias. Merecia porque havia falhado. Falhado na única coisa em que sempre fora bom: roubar.
— Ladrão — a voz do General soou majestosamente alta, alta o suficiente para que todos ali se calassem, mas indubitavelmente se dirigindo a ele — Hoje você aprenderá que ninguém brinca com a Guarda Real. Ninguém nos faz de tolos. Não sem arcar com as consequências.
Gritos retumbantes de apoio e concordância soaram em resposta. Olhos raivosos fitavam-no de onde quer que ele olhasse. Apenas um par deles pareciam relaxados. Calmos, ao menos na superfície. Aquele tipo de calmaria que recai sobre o mar antes de uma forte tempestade. Ou um tsunami. Os olhos de Athara, ainda vestida como um soldado. Ela bocejou preguiçosamente, de seu lugar, alguns passos atrás do General.
Todo o Quartel estava ali. Cadetes e veteranos. Alguns rosnaram para o ladrão, quando seus olhos se demoraram demais sobre eles. Outros cuspiam e xingavam. Nenhum deles estava feliz. Pareciam um pouco desequilibrados, na verdade. Kaden não via motivo para tanto ódio gratuito. Fora o óbvio, claro — a coisa toda de destruir a dignidade deles e fazê-los de idiota.
Mas Kaden não demonstrou medo. Ele se empertigou o máximo que conseguiu, com os pontos repuxando o peito. Manteve os ombros eretos. Os olhos fitaram o General com obstinação. Se fosse morrer naquele dia, morreria com orgulho — ou o máximo dele que um ladrão poderia ter. Não choraria ou resmungaria. Ele enfrentaria aquilo com os olhos secos e a cabeça erguida.
Com sua visão periférica ele viu quando os Arautos da Morte se juntaram à roda. Expressões impassíveis e andar tranquilo. Eles exalavam um tipo de poder bruto e mortal que tornava quase impossível fitá-los diretamente. Talvez Kaden chorasse um pouco afinal. Chorar era normal, não é mesmo? Isso não significava nada.
Ele engoliu em seco quando Darius — o de cabelos avermelhados e olhar afiado — ofereceu a ele um sorrisinho zombeteiro e provocante. Os outros quatro mal pareceram reparar em sua existência, apesar do clima carregado ao redor do garoto. Já deviam ter presenciado tantas mortes brutais e violentas que aquilo se tornara uma banalidade. Nada mais que um evento inconveniente.
Hashim agora se movia do centro do círculo para uma posição ao lado dos cinco Arautos, à esquerda da roda. O sorriso que ele dirigiu a Kaden teve o efeito desejado, os pelos de seus braços se arrepiaram. Apesar disso, o garoto sorriu de volta, e penteou os cabelos negros com os dedos, demonstrando normalidade.
— Na maior parte do tempo, eu aprecio um pouco de dramaticidade — Kaden enrugou o nariz — Mas acho que você já pode estar exagerando um bocado, General.
Um soldado à sua direita rosnou. Um soco repentino quase lhe acertou o rosto em cheio. No entanto, seus reflexos de ladrão o salvaram, e a mão em punho apenas lhe acertou de raspão o queixo.
— Faça melhor da próxima vez — ele deu um sorriso sem dentes para o soldado irritadinho, enquanto massageava discretamente o maxilar.
O clima de tensão se intensificou. Uma ordem do General e ele tinha certeza de que todos aqueles soldados voariam sobre seu pescoço. Mas ele não a deu. Parecia saber o que Kaden estava tramando. O que sua mente desesperada parecia achar ser uma brilhante ideia. Seus olhos não se desviaram do garoto nem um segundo. Observando como um falcão enquanto ele provocava e atiçava soldado por soldado.
— Eu reconheço você — ele apontou para um jovem recruta de olhar raivoso — Já sei! Acho que estava acompanhando um dos covardes que eu esfaqueei um dia desses.
O homem se lançou sobre Kaden como um leão acuado, mas dois de seus companheiros o seguraram pelos ombros antes que ele alcançasse o ladrão.
— E eu que pensava que a Guarda Real só treinava homens. Parece que eles começaram a aceitar bebês resmungões também — o ladrão meio sorriu, meio rosnou.
Antes que um dos outros soldados o traspassasse com uma lança — ou pior — um som inesperado soou na arena. Uma gargalhada. A risada do General veio embebida em sarcasmo e veneno. Sua expressão desdenhava de Kaden, como se ele não fosse nada além de um animalzinho de estimação. Um bichinho que fizera algo inesperado. Os olhos de Kaden nunca pareceram tanto com gelo como quando ele se virou para encarar Hashim.
— Eu sei o que você está tentando fazer, e pode ter certeza de que não vai funcionar.
— E o que seria isso, exatamente, ó grande adivinho, leitor de mentes? — Kaden gracejou.
— Não importa o quanto você tente provocar e irritar meus homens. Eles já receberam suas ordens — a expressão de Hashim se tornou cortante — Ninguém vai lhe oferecer o consolo da morte. O que dirá uma morte rápida. Antes de encontrá-la você vai pagar por seus atos, criança. Por todos eles.
Kaden tentou não mostrar como a declaração mórbida o deixou abalado, mas um vislumbre de terror iluminou seu rosto antes que ele se transformasse na costumeira máscara de mármore.
— Faça o seu pior, General.
— Pode ter certeza de que eu vou — o General deu um aceno breve de cabeça, os olhos fixos em algo atrás de Kaden. Algo... ou alguém.
Algo frio espetou suas costas. O fio da espada desceu lentamente por sua coluna, rasgando sua camisa da gola à base da coluna, e dividindo-a em duas metades que penderam frouxas ao redor de seus braços.
Ele não se virou. Seus olhos se prenderam aos do General como ímãs, e ele os obrigou a não demonstrarem quaisquer emoções que percorriam sua mente. Ainda de costas, ele retirou a camisa em farrapos, passando-a lentamente sobre os ombros. Como se tivesse todo o tempo do mundo. Como se não estivesse cercado pela ameaça de dor e morte iminentes.
As bandagens no peito agora estavam salpicadas de vermelho. Lentamente, Kaden as arrancou também. O rosto impassível. O peito suturado agora estava nu. A pele bronzeada adquirira um tom de vermelho ao redor dos pontos. A julgar pelo pulsar doloroso do ferimento, aquilo não estava curando tão bem quando deveria.
Mas não era por causa do ferimento, ou sequer dos rasgos, que ele arrancara a camisa. Muitos dos soldados cuspiram em sua direção ao ver o que ele tão orgulhosamente exibia.
As tatuagens cobriam todo o braço esquerdo, e a parte superior dos ombros. Todas tinham algum significado. A maioria rebeldes e afrontosas. A mais visível delas era a que descia do ombro até a base do antebraço esquerdo. A serpente de escamas negra rodeava imponente os músculos do braço de Kaden. Seus olhos viperinos ameaçadores de alguma forma pareciam fitar especialmente o General Hashim. Aquele era o símbolo mais conhecido dos Ladrões Escarlate. Uma serpente negra, normalmente mostrada rodeando uma flecha — sempre com as cores do reino, azul e dourado —, sangue escarlate escorrendo de suas presas. Apesar de não haver flecha na tatuagem, aquela era inconfundivelmente uma tatuagem da guilda.
Havia outras claro. No antebraço esquerdo, uma adaga bastante realista atravessava um grande crânio felino enegrecido. O leão negro que estampava orgulhosamente o brasão do Rei Orloch, o brasão do reino agora. Kaden esboçou um sorriso quando percebeu como os olhos de Hashim se demoraram nela, e como eles faiscaram diante da afronta explícita.
A tatuagem dos ombros era menos uma mensagem rebelde e mais um lembrete pessoal. Não fora feita como as outras. Não continha nenhum traço de revolta ou rebeldia. Aquela tatuagem era algo diferente. Nenhum dos soldados conseguiu definir com certeza o que ela significava, mas Kaden sabia exatamente o que cada centímetro de tinta queria dizer. As duas grandes e emplumadas asas começavam no meio das costas, e se estendiam pelos dois ombros. Eram quase reais demais, como se a qualquer momento elas fossem começar a se movimentar e tirar o ladrão voando dali. Mas elas não se mexeram, e a brisa que passava por ali não movimentou as penas douradas e marrons.
E sob todas aquelas tatuagens. Sob toda a fachada ousada e ofensiva, havia cicatrizes. Nos ombros, nos braços, nas costas. Elas tinham diâmetros e profundidade diferentes. E ele se lembrava de todas elas.
O corte profundo que atravessava o braço direito ele havia ganhado há um ano, durante um golpe de sorte em que faturara quase cinco mil moedas. Ele e um grupo pequeno haviam saqueado a casa de campo do conde Fletchsberg durante sua estadia de inverno. Eles se infiltraram na mansão do jeito mais antigo possível: disfarçados como "viajantes saqueados". Para tudo funcionar de acordo com o plano alguém deveria fingir estar ferido. Ele imaginou que alguém estar ferido de verdade fosse parecer mais real.
As cicatrizes que cobriam os ombros eram resultado de uma tarde muito turbulenta em que ele decidira se ensinar a montar. Tudo que ele podia dizer sobre isso era: cavalos não deviam ser amarrados — eles não gostam disso —, e se for montar um cavalo pela primeira vez, não faça isso num terreno pedregoso.
A história das cicatrizes das costas era um pouco mais melancólica. Elas haviam sido feitas quando ele tinha cerca de cinco anos. Logo após ter se tornado órfão. Quando ainda era inocente, e doce. Quando era tolo e fraco. Aquele Kaden morreu no dia em que aquelas cicatrizes foram feitas.
Naquele dia em especial ele estava com muita fome, depois de ter passado quatro dias sem nada para comer. O corpo começava a fraquejar. Ele sabia que ia morrer se não arranjasse logo algo para comer. E então havia aquela barraca cheia de pães e salgados, e tudo parecia tão bom, e tinha um cheiro maravilhoso.
Quando o padeiro o pegou escondido em um beco devorando cinco pães frescos com a ferocidade de um leãozinho não teve piedade. Os soldados que o puniram também não tiveram. Eles sequer hesitaram. Não pararam quando ele chorou, ou quando suas costas estreitas começaram a sangrar, muito menos quando desmaiou de dor no meio da praça.
As asas agora cobriam a maior parte delas, mas ainda estavam estampadas em alto relevo sobre a pele, como um mapa invisível.
Do local onde as asas pareciam emergir no meio de suas costas estava a maior delas, e sob ela era possível ver que algo havia sido tatuado. No entanto, todos estavam muito longe para conseguirem decifrar as letras pequenas e rebuscadas. Ou quase todos. A pessoa que ainda mantinha o metal frio pressionado à sua espinha provavelmente conseguiria ler, se tentasse.
— Eu sei — Kaden deu de ombros com falsa modéstia — Eu tenho um físico impressionante. Podem olhar.
Hashim rosnou, mas tudo que disse foi:
— Acabe com ele — e se afastou para os limites da arena, para se juntar aos outros soldados.
A pressão da espada às suas costas aumentou com o aval do General, obrigando-o a se esquivar e se virar para encarar seu adversário nos olhos de uma vez por todas. Olhos violetas tempestuosos e faiscantes, que agora o fitavam com uma expressão extremamente assustadora.
Ele devia ter imaginado que seria ela quem daria o golpe final. Lady Athara Bryer parecia ser o tipo de pessoa que adoraria estripar alguém lentamente. Ele ainda não entendia o motivo da filha de um duque estar ali no meio daqueles soldados, se vestindo como eles, agindo como se pertencesse ao lugar. Mas ele sabia de uma coisa: Athara parecia estar extremamente feliz com a sua morte e por ser quem faria isso. E ele não duvidava de que ela pudesse fazer aquilo ser bastante doloroso para ele.
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Uma espada foi passada violentamente para as mãos de Kaden. Ele arqueou uma sobrancelha quando um soldado mal-humorado a forçou em suas mãos. Era uma espada simples, longa e muito afiada. O cabo envolto em couro parecia firme sob sua mão. Isso o fez lembrar do cabo de outra espada, que ele provavelmente nunca mais veria.
— Pensei que isso fosse uma execução.
— Não se engane — Athara sorriu sombriamente. — Essa espada não vai servir de muita coisa quando eu estiver picando você em pedacinhos.
— Sinceramente — Kaden sussurrou alto o suficiente para que todos ao redor dos dois ouvissem — nunca ouvi algo mais sexy em toda a minha vida.
Isso foi o suficiente para as chamas nos olhos de Athara explodirem, e ela se lançar contra ele. O impacto fez suas mandíbulas retinirem e o ferimento do peito pulsar, mas ele sorriu para ela quando seus rostos se aproximaram. Um sorriso que pareceu mais uma careta, mas que mesmo assim irritou Athara mais do que seria saudável para Kaden.
As espadas se afastaram novamente. A garota o circundava como um felino circundaria um ratinho. Todos sabiam onde aquela luta levaria e como ela terminaria, mesmo assim Athara parecia não se importar em prolongá-la por um tempo, em brincar com ele.
A respiração de Kaden estava entrecortada, suor já escorria de sua têmpora. Ele se arrependia profundamente do momento em que enfiara a adaga no próprio peito, apesar de ter parecido a ele uma ideia brilhante naquele instante.
Não havia se recuperado totalmente da perda de sangue e o cansaço fazia suas pernas e braços parecerem ser feitos de chumbo. Ao contrário de Athara, que parecia uma chama serpenteando e queimando tudo que tocava.
Ela atacou de novo, repentinamente. A espada desceu sobre sua perna, rápida como um raio. Kaden saltou desajeitadamente, o mais rápido que conseguiu, mas não o suficiente. Ele sibilou quando um talho fundo se abriu em sua cocha esquerda. Seu sangue pingava da ponta da espada de Athara agora. Se ele houvesse hesitado um segundo sequer, a espada teria decepado sua perna.
— Ainda está achando isso sexy? — provocou ela, com um meio sorriso.
Kaden não respondeu, mas seus olhos escureceram perceptivelmente e as mãos se fecharam com mais força ao redor de sua arma. Antes que ela voltasse a atacá-lo, ele golpeou. O golpe não foi muito preciso e Athara o bloqueou com facilidade, mas ele já esperava por isso. Na verdade, ele não precisava de um golpe forte ou certeiro. Só de uma distração. Agora seus corpos estavam próximos de novo, e com a rapidez de uma víbora — Kaden, que passara a sustentar a espada apenas com a mão direita, apesar disso exigir dele mais força e concentração — esticou a mão e sacou da bota da garota a própria adaga.
Athara recuou, surpresa com sua audácia e rapidez. Os olhos de todos que acompanhavam a luta se voltaram para a adaga. Hashim arquejou visivelmente, dividido entre a fúria pelo ladrão e o receio pela vida de Lady Bryer. Ele deu um passo em direção ao garoto, pronto para impedi-lo ou se jogar na frente de Athara e receber o golpe por ela — o que fosse necessário. Outro movimento acontecia à sua direita, e Kaden supôs que fossem os Arautos entrando em posição, prontos para defender o General.
Sabendo que teria que agir rápido, Kaden despachou a espada ruidosamente no chão. Nunca fora especialmente bom com espadas — para não falar que era horrível —, mas as adagas ele conhecia. Sempre foram sua arma favorita, seu truque de mestre. A que segurava agora era especial para ele. A arma cravejada de safiras azuis era a única lembrança que tinha da mãe, e provavelmente o único bem valioso que possuíra em toda a sua vida. Ele nunca arriscaria perdê-la em circunstâncias normais. No entanto, prestes a morrer, não fazia muito sentido para ele preservá-la.
Ele olhou para Athara — estava calma, seus olhos raivosos firmes nele. Eram lindos aqueles olhos, ele se permitiu admitir. O lilás parecia cintilar e era estriado com raios turquesa nas extremidades. Ele ainda fitava aqueles olhos quando um sorriso se abriu lentamente em seu rosto. E então Kaden cravou a adaga. No próprio peito.

O Príncipe Dos Ladrões - Mirelly AlvesOnde histórias criam vida. Descubra agora