Capítulo 9

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A luz branca e ofuscante cegou Kaden num primeiro momento. Aquele devia ser um bom sinal. Ele não achava que as fogueiras do inferno arderiam naquela cor. No entanto, seus últimos atos não haviam sido exatamente bondosos ou caridosos, então era compreensível que ele quisesse verificar por ele mesmo.
Quando sua visão finalmente se ajustou à luminosidade ele franziu o cenho. Ele não achava que o pós vida tivesse aquela aparência, mas quem era ele para julgar? O quarto era pequeno, mas limpo e arejado. A luz do sol que entrava por uma pequena janela iluminava o cômodo, que possuía nada mais que um armário minúsculo, uma cadeira de madeira grosseira e a cama em que se encontrava. Era uma cama estreita, com um colchão fino e lençóis categoricamente brancos.
Ele tocou o peito, inconscientemente, e se surpreendeu ao perceber que não usava mais o uniforme da guarda em frangalhos de antes. Kaden o conseguira com um dos soldados mais jovens, depois de obrigá-lo a trocar de roupas com ele e trancá-lo em um armário. Ele se perguntava se alguém já o havia libertado. Ele pareceu ser ligeiramente claustrofóbico antes de Kaden desmaiá-lo com um gancho de direita bem aplicado. Azar o dele.
Agora ele trajava uma camisa branca, as mangas grandes demais para ele haviam sido dobradas nos punhos. Para seu alívio as calças ainda eram as mesmas. Já era estranho demais ter alguém trocando sua camisa sem seu consentimento, ele não sabia como se houvessem substituído suas calças também. Mortificado, com certeza.
O garoto levantou a camisa, com cuidado. O corte no peito também havia sido cuidado. Agora uma faixa branca rodeava firmemente seu tronco por debaixo das roupas. Não tinha sinais de sangue, mas o corte ainda doía quando ele se movimentava.
Sua cabeça estava pesada e dolorida, mas sua memória estava em perfeito estado — ele achava que sim, pelo menos. Conseguia se lembrar de tudo que acontecera. O plano, o fracasso do plano, o outro plano e o fracasso do outro plano também, o General o golpeando com a espada e então...nada. Sua surpresa em estar vivo era compreensível. E era mais surpreendente ainda que ele não houvesse despertado no meio de um açoite ou de tortura de choque talvez. Levando em conta as condições de sua captura — ele fora capturado, não é? — e tudo mais, era muito estranho que ele despertasse de repente em acomodações como aquela — limpas e confortáveis. Em toda sua vida, ele duvidava que houvesse dormido em um lugar como aquele. Ele só tivera o prazer de se deitar em uma cama uma ou duas vezes nos últimos dezessete anos. E agora, estava ali.
Kaden esperava algo mais parecido com uma masmorra escura, uma cela fedorenta, talvez o inferno. Aquilo era confuso. Talvez ele estivesse no paraíso. Ele riu com essa ideia. Claro que não. Imagine! Ele, um ladrão, no paraíso.
Ele divagou por um instante — a mão esfregando distraidamente o queixo. Talvez houvesse sido resgatado! Quem sabe os outros ladrões houvessem mesmo conseguido fugir e tivessem voltado com ajuda..., mas isso também não fazia sentido. Nenhum deles tinha condições de bancar um quarto daquele. E que ajuda seria suficiente contra metade da Guarda e os Arautos da Morte? Além disso, agora que prestava atenção, tinha certeza de estar ouvindo um som muito parecido com... espadas se chocando. E outra coisa. Um farfalhar suave, se aproximando. Passos.
A porta do quarto se abriu de uma vez. Kaden se sobressaltou. As mãos voando para o cano da bota, sem esperar realmente encontrar algo. Ele já deduzira que se estivesse mesmo em posse do General, ele não deixaria nenhuma arma ao seu alcance. Mas para sua surpresa, ali estava. Sua adaga, no mesmo lugar em que sempre estivera.
Não teve muito tempo para pensar nisso. Alguém entrava no quarto. Ele segurou a adaga mais forte. Quem quer que fosse, agora estava de costas para Kaden, fechando a porta sorrateiramente atrás de si. Ele não teve tempo de ver nada além de uma cabeleira negra, antes de se se aproximar furtivamente do intruso. Ele estava tão absorto em se esgueirar quarto adentro que mal reparou na presença de Kaden, até que sua adaga já estivesse pressionada contra sua garganta.
— O que... — ela se calou. O metal frio contra a pele de seu pescoço impedindo-a de falar.
Kaden reconhecia aquela voz de suas memórias recentes. Ele se lembrava do tom superior e autoritário. Se lembrava de sua entonação esnobe quando afirmou sua herança nobre, mais cedo naquele mesmo dia — ou seria no anterior? — e, acima de tudo, se lembrava perfeitamente daquele perfume inebriante de rosas e pêssegos, que agora invadia suas narinas.
— Não se mexa — ele sussurrou em seus cabelos — ou eu garanto que essa vai ser a única coisa que vai fazer na vida.
— Sério? — a garota bufou, e ele se surpreendeu com sua audácia. Mas então Kaden entendeu de onde vinha tanta coragem. Porque segundos depois a adaga não estava mais em suas mãos.
Seus movimentos foram rápidos demais para processar. O cotovelo da garota lhe acertou o estômago — pouco abaixo do curativo — e ele cambaleou. Então com uma rapidez impressionante ela o desarmava ao mesmo tempo que o prendia junto à parede.
— Você não deveria garantir coisas que não pode fazer, ladrãozinho.
Pelo menos ele podia descartar a ideia do paraíso.
— Como você...? — ele não terminou a frase, porque ela esmagou seu rosto contra a parede.
E então suas mãos haviam saído de cima dele. Kaden cambaleou antes de se firmar sobre as próprias pernas novamente. Suas bochechas coradas de vergonha e humilhação. Não por ser dominado por uma mulher. Não, ele tinha completa ciência de como as mulheres podiam ser completamente mortais se quisessem. Ele se envergonhava por tê-la subestimado, e talvez superestimado sua própria capacidade. Se envergonhava por ter sido pego desprevenido.
— Sente-se — ordenou ela, o desdém nítido em sua voz — Você está fraco depois de perder tanto sangue.
— Eu não estou... — ele iria dizer "fraco", mas uma pontada atravessou seu abdômen, tirando seu fôlego e impedindo-o de terminar a sentença.
Lady Athara arqueou uma sobrancelha, desafiando-o a continuar o que iria dizer. Kaden fez uma careta em sua direção, mas se calou, e com os olhos sempre nela, finalmente se deixou cair na cama. Com cuidado, para não pressionar o ferimento, ele cruzou os braços sobre o peito de forma defensiva.
Agora que podia observá-la com calma, notou o porquê de não a ter reconhecido logo que entrou no quarto. O vestido vermelho volumoso, que usava na última vez que se viram, havia desaparecido. Os sapatos altos e horrivelmente desconfortáveis também. Agora ela usava calças de linho apertadas na cintura, mas que se alargavam ao chegar nas pernas. Elas estavam enfiadas em botas baixas que lhe chegavam à altura das canelas. A camisa que vestia possuía o mesmo tom dos uniformes de treino que ele vira os soldados da Guarda usarem — um azul vivo, com pequenos detalhes em preto —, e carregava o emblema real bordado no peito esquerdo. O cabelo rodeava a cabeça como uma coroa. Kaden se forçou a não observar demais. Se forçou a não a achar gloriosamente linda.
Sua adaga ainda estava nas mãos dela, que brincava distraidamente com ela, passando-a com fluidez de uma mão para a outra. O sol que entrava da janela se refletia na arma, fazendo feixes de luz dançarem pelo quarto, e ocasionalmente cegarem o garoto.
— Imaginei que eu estaria morto a essa altura — ele comentou despreocupadamente, depois de limpar a garganta.
— Eu também imaginei — e ela disse isso como se estivesse extremamente decepcionada.
Kaden franziu o cenho.
— Então por que eu não estou?
Ela suspirou e não disse nada, seus olhos percorrendo despreocupadamente o cômodo. Ignorando-o propositalmente.
— Como está se sentindo? — perguntou ela, enfim, passado algum tempo. E ele se perguntou por que ela estaria interessada em saber. Não parecia que se preocupava com ele. Na verdade, muito pelo contrário.
— Como se houvesse esfaqueado a mim mesmo e depois sido acertado por uma espada.
— Não seja dramático — a sombra de um sorriso brincou em seus lábios, um sorriso diabólico, mas ainda assim um sorriso — Hashim te acertou apenas com a empunhadura da espada. Achei que ele foi bem piedoso na verdade.
—  Piedoso, claro — ele desdenhou.
A expressão da garota se anuviou.
— É, piedoso — sibilou Athara — Você e seus amiguinhos roubaram uma relíquia da Coroa. Um bem avaliado em milhões e milhões de zeyns. Se eu estivesse no lugar de Hashim pode ter certeza de que você não estaria aqui reclamando do seu estado de saúde. No mínimo, estaria em uma masmorra fedida e escura, apodrecendo, talvez sendo torturado.
— Tenho certeza de que sim — ele apenas replicou, com indiferença, fazendo-a semicerrar os olhos raivosos.
Os dois ficaram calados por mais alguns minutos. Minutos inquietantes, em que Athara brincava displicentemente com a adaga de Kaden, recostada na parede, e ele por sua vez, fingia que isso não o incomodava — o que certamente estava longe da verdade. Não lhe passou despercebido quando ela enfiou a adaga no próprio cinto. Athara deu de ombros quando percebeu seu olhar irritado.
— Você está maluco se achou mesmo que eu a deixaria com você.
Kaden suspirou resignado e se deitou na cama, esticando as pernas. Se ficasse ali por muito mais tempo com ela, Athara não precisaria se preocupar, porque ele daria um jeito de pegar aquela adaga e a enfiaria no próprio peito. Nada que ele já não tivesse feito antes, de toda forma.
Ele ainda estava imaginando o lugar que lhe causaria uma morte mais rápida se apunhalado, quando a porta se abriu novamente. Athara dirigiu imediatamente seus olhos para lá, e Kaden percebeu a admiração velada em seu semblante, antes de ele se refazer naquela máscara inexpressiva de tédio novamente.
O visitante — ou o anfitrião, melhor dizendo — saudou a garota com um aceno de cabeça, antes de se virar para o ladrão.
— Vejo que está confortável — Hashim disse, e depois sorriu de uma forma que fez Kaden discretamente engolir em seco — Que bom, porque isso não vai durar muito tempo.

O Príncipe Dos Ladrões - Mirelly AlvesOnde histórias criam vida. Descubra agora