Capítulo 12

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Bem cedo na manhã seguinte — cerca de duas horas antes do sol nascer — ele descobriu que estivera alocado em um dos quartos dos alojamentos dos oficiais. Ao que parecia o problema com a tubulação de gás fora contida rapidamente depois de tudo, e como todos os soldados queriam matá-lo foi mais seguro que ele permanecesse longe deles. Além disso, não havia mais acomodações desocupadas no prédio dos cadetes e as acomodações dos criados eram muito pequenas para que coubessem nelas o garoto, o médico — que ele descobriu ter sido quem lavou e enfaixou seus ferimentos, evitando sua morte com o propósito de adiá-la para algum dia num futuro muito próximo em que o General pudesse fazer isso com as próprias mãos — e seus equipamentos de cura.
Enquanto um dos criados o guiava até seu novíssimo local de serviço, ele tentou gravar na mente o máximo de informações possíveis sobre o Quartel. Agora que tinha tempo, tentaria fugir tão logo alguém tirasse os olhos de cima dele. Não era idiota e não tinha ilusões de ser mais que um escravo ali, e no futuro talvez um bode expiatório para a fúria do Rei. Ele havia decorado a planta do lugar e podia perambular ali de olhos fechados se fosse necessário, mas não diria isso ao homem que o conduzia até onde sabe-se lá Deus. Além do mais, ele havia aprendido que aquele lugar podia ter segredos que não constavam em planta alguma, e eram esses segredos que buscava desvendar agora. Talvez ele esbarrasse em alguma saída supersecreta em algum momento.
O criado que o guiava por entre os corredores devia ter cerca de trinta anos. Era alto, mas caminhava encurvado — ele imaginou que por alguma doença muscular. Não tinha sinais de maltrato. Na verdade, seu uniforme estava impecavelmente limpo, ele parecia nutrido e disposto. Foi difícil para Kaden acompanhar suas passadas enérgicas, ferido como estava. Cada passo evocava uma série de palavrões piores que os anteriores.
— O General não gosta que seus empregados usem esse tipo de linguajar — repreendeu-o o homem depois de algum tempo. Kaden lhe lançou um olhar de descrença, e quando o ferimento voltou a doer empenhou-se em ser ainda mais criativo com os xingamentos.
Criado — como Kaden passara a chamá-lo depois de ele lhe ignorar descaradamente quando este lhe perguntou seu nome — o conduziu do prédio dos oficiais até o alojamento dos cadetes. O prédio todo estava vazio como uma tumba e por todo o caminho ele não viu sequer um soldado. Ele se perguntou onde eles estariam a essa hora da manhã. Quando questionou isso — entre fôlegos curtos e ofegantes — a Criado ele lhe lançou um ríspido “não é da nossa conta”.
O Quartel era um lugar extremamente minimalista, o que, em outras palavras, quer dizer entediante e sem graça. Todas as portas eram iguais — madeira maciça, lixadas e polidas a perfeição — e todas estavam trancadas, as paredes eram lisas e brancas e, fora algumas lamparinas dispostas sistematicamente ao longo dos corredores, não tinham nenhum adereço ou enfeite, nada desse tipo.
Ele mal havia atravessado metade do prédio e já estava entediado. Ele quase agradeceu por ter seu ferimento mortal e doloroso para entretê-lo. Quando Kaden e Criado finalmente atravessaram o último corredor dos alojamentos, foi com pesar que ele calculou que se quisesse fugir dali teria que atravessar tudo aquilo novamente. As probabilidades de passar despercebido eram quase nulas, principalmente quando os cadetes retornassem.
No fim do último corredor havia outra porta. Parecia mais surrada que as outras, estava descascada em alguns lugares e quando o criado a empurrou ela rangeu de forma perturbadora. Quando ele a abriu e puxou Kaden bruscamente para dentro dela, o ladrão percebeu que estava em uma cozinha. Era ampla e muito bem iluminada. Quase uma dezena de pessoas se moviam como formigas pelo cômodo, picando vegetais, mexendo panelas, lavando louça.
O cheiro de comida preenchia toda a cozinha. Diversos aromas serpentearam por seu nariz, entorpecendo seu cérebro faminto. Sopa de legumes com temperos diversos, ensopado de carne e outros que ele não conseguia adivinhar.
Kaden cambaleou, se firmando de pé apenas com a ajuda da parede. De repente se sentia muito fraco e faminto. Havia se alimentado a quanto tempo? No mínimo dois dias. Talvez mais.
— O garoto parece prestes a desmaiar — comentou desinteressada uma mulher que picava legumes sobre a imensa mesa no centro do cômodo.
Ela devia ter cerca de vinte e poucos anos. Tinha bochechas proeminentes e coradas pelo calor do fogo. O cabelo castanho estava amarrado bem apertado em um coque no topo da cabeça.
— Ah, céus — resmungou Criado, mal-humorado. — Val, arrume alguma coisa para ele comer, por favor.
Kaden imaginou que Val era a mulher idosa e enrugada que mexia cinco panelas ao mesmo tempo. Ela não respondeu Criado, mas até mesmo Kaden conseguiu perceber o significado de seu olhar cético e carrancudo. “Não está vendo que estou ocupada? Pegue você mesmo, imbecil”, seu olhar dizia. E foi o que Criado fez, mesmo que a contragosto.
Alguns instantes depois ele empurrou um pão seco e um pedaço de queijo velho, que havia tirado de um armário de madeira, nas mãos de Kaden, que não demorou a enfiar metade do pão na boca.
— Mastigue depressa — Criado ordenou — Temos muito o que fazer hoje.
Kaden observava o movimento na cozinha enquanto mastigava seu desjejum pobre, ignorando um olhar fulminante do homem. Algumas das pessoas que circulavam por ali quando chegou já haviam saído pelos corredores com bandejas abarrotadas de sanduíches, bolos e biscoitos. Para os cadetes desaparecidos, ele deduziu.
Restavam na cozinha agora Kaden, Criado, a garota de bochechas vermelhas, a velha cozinheira e mais dois rapazes, próximos de sua idade. Um era esguio e alto como Criado, mas diferente dele tinha a pele negra como ébano. Seus olhos arregalados pareciam congelados em uma expressão eterna de surpresa ou medo. O outro tinha pele clara, era um pouco mais baixo, tinha ombros largos e ossudos, e um rosto inexpressivo. O primeiro empilhava uma porção de sanduíches pequenos em uma bandeja, e o segundo lavava uma pilha inacreditavelmente alta de louça.
Nenhum deles se interessou o suficiente por Kaden para lhe dignar um segundo olhar. Pareciam estar todos atarefados demais. Ou só não se importavam.
— Sua primeira tarefa será ajudar Gertie a descascar os legumes e picá-los — Criado não esperou que ele terminasse de comer para falar. — Eu tenho que cuidar de alguns assuntos para o General, mas volto logo para designá-lo a novos afazeres.
Aparentemente, Gertie era o nome da garota corada. Depois que Criado se retirou em meio a resmungos que ele imaginou serem típicos do homem, ela lhe passou silenciosamente uma faca e uma bacia cheia de cenouras e batatas. Kaden não teve opção a não ser aceitar os utensílios. O General tinha deixado claro que não trabalhar não era uma opção. Mesmo que ele estivesse praticamente certo de que os ferimentos no peito estavam infeccionados, e o corte que Athara lhe desferira na coxa ainda o fizesse mancar.
Com o maxilar cerrado ele começou a cortar os legumes. Não se sentou como fizera Gertie — dobrar o corpo naquela posição não era uma opção devido aos ferimentos. Apenas colocou a bacia sobre a mesa e começou a descascar e fatiar.
— Então Gertie, como é trabalhar numa cozinha?
A garota arqueou uma sobrancelha quando olhou para ele, nada divertida. Kaden sorriu sedutor. Aliados em território inimigo eram sempre bem-vindos. E Deus sabia que ele precisava de muitos. As probabilidades não estavam nem um pouco a seu favor ultimamente.
— Você vai descobrir logo, não é? — ela resmungou, sem paciência.
Ele não achava que descobriria. De um jeito ou de outro, duvidava que fosse passar muito tempo naquele lugar, mas não disse nada disso a Gertie. Começava a suspeitar que ela não era muito de interagir com as pessoas.
Durante mais de duas horas eles trabalharam em silêncio, interrompido apenas por uma ocasional tentativa de Kaden de puxar assunto. Todas elas bruscamente desencorajadas por Gertie. Os outros ocupantes da cozinha se contentaram em assistir de longe a interação pouco entusiasmada dos dois. Em um desses constrangedores momentos ele quase podia jurar ter visto o garoto de ombros largos, que ainda lavava a louça, estremecer com uma risada silenciosa.
Quando Criado finalmente voltou de seus “afazeres importantes” ele e Gertie estavam fatiando os últimos legumes restantes. Criado assentiu, parecendo satisfeito, e apenas disse:
— Siga-me — e então depois de pensar um instante — e você também Winstle.
Winstle, o garoto de olhos arregalados, apenas assentiu e, depois de limpar as mãos em um pano limpo, os acompanhou em silêncio. Criado os conduziu até uma porta subjacente na cozinha que passara despercebida a Kaden em um primeiro momento. Era estreita e estava semioculta por um grande armário de madeira — repleto de pratos, xícaras e pires de louça que reluziam à luz do céu da manhã que entrava pela única e minúscula janela da cozinha.
A porta dava para um pequeno pátio externo, onde se amontoavam pilhas e pilhas de madeira. Haviam três machados escorados na pilha maior, que Criado apontou com um acenar de cabeça.
— A lenha da cozinha e dos quartos dos oficiais está quase no fim — disse, com um suspiro quase entediado — Essa é a tarefa de vocês, até a hora do almoço.
Criado disse isso e se virou repentinamente, como se quisesse sair logo dali para mais uma de suas ilustres atividades com o General.
— Eu estou ferido — Kaden apontou, antes que o homem tivesse tempo de sair.
Criado se virou, quase à porta. O olhar que ele dirigiu a Kaden estava repleto de sarcasmo e deboche.
— Estou vendo.
— Eu não estou em condições de cortar madeira com um machado — Kaden praguejou. — Mal consigo andar!
A expressão do homem se obscureceu.
— Eu devo lembrá-lo de que foi você quem escolheu ferir a si mesmo, e do porquê? — Criado sibilou — O General foi bem claro quando disse que se você não trabalhar, não come. Então sugiro que comece depressa, ladrão.
Kaden mordeu a língua. Sabia que nada que pudesse dizer mudaria algo em sua situação. Mas o olhar que lançou a Criado foi pior que qualquer coisa que pudesse dizer.
— Meu nome não é “ladrão” — ele disse, por fim, derrotado.
No entanto, Criado já havia passado pela porta, fechando-a estrondosamente atrás de si.
 

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⏰ Última atualização: Nov 16, 2021 ⏰

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O Príncipe Dos Ladrões - Mirelly AlvesOnde histórias criam vida. Descubra agora