O covil dos Ladrões Escarlates estava cheio naquela noite. A cacofonia de vozes era ensurdecedora, e Kaden se perguntou como aqueles homens e mulheres eram considerados os mais sorrateiros e soturnos do país. Ele não se surpreenderia se a Guarda Real invadisse a reunião naquele mesmo um instante, atraídos pelo barulho estrondoso. Eram risadas e apertos de mão por todos os lados.
Era raro terem uma reunião daquela magnitude. Normalmente - para evitar causar rumores e desconfianças - eles se reuniam em grupos pequenos, não mais que dez pessoas por vez. Mas agora, amigos que não se viam a décadas se encontravam novamente, e era impossível reprimir as exclamações de felicidade, as gargalhadas, as histórias que eram contadas e recontadas conforme a noite seguia seu curso - a maioria dela exageradamente épicas e mentirosas.
- Gerald! - uma mulher alta e esguia trombou nele, numa corrida desenfreada para se jogar nos braços de um homenzarrão sorridente e caloroso.
O homem a girou nos braços fortes, e os dois gargalharam, antes de se acomodarem em um abraço camarada.
Kaden revirou os olhos. Internamente, ele sentia uma parcela de inveja. Inveja dos olhares saudosos, das memórias trocadas. Naquela noite ninguém gritaria seu nome. Não haveria nenhum amigo para trocar apertos de mão. Nenhuma garota bonita.
O garoto enterrou mais as mãos nos bolsos do casaco surrado, e praguejou consigo mesmo. A atmosfera do covil já começava a mexer com ele. Aquele sentimentalismo todo não fazia bem a ninguém.
Amigos eram apenas obstáculos para alguém como ele - que sempre fazia apostas altas. E ele precisava se lembrar disso, urgentemente. Ele nunca precisara de ninguém, e não seria agora que iria começar a precisar. Pessoas eram instrumentos para chegar a um objetivo, e se afeiçoar a elas só impedia que isso acontecesse. Foi mais fácil se convencer disso quando Sebastian puxou uma cadeira ao seu lado.
- Sempre taciturno, Kad - ele sibilou, sem preâmbulos - Devia estar feliz, já que conseguiu a reunião que tanto queria.
Kaden lançou uma olhadela na taberna ao seu redor. De todas as dezenas de mesas ao seu redor, Sebastian tinha mesmo que escolher especificamente a sua para se sentar? Pelo que Kaden se lembrava, ele devia estar com seu círculo íntimo e diabólico, contando pontos por assassinatos cometidos ou algo assim. Onde estavam aqueles seus amigos horríveis e idiotas quando Kaden mais precisava deles? Ele não conseguiu encontrá-los em nenhum canto do salão, mas sabia que eles deviam estar por perto. Os demônios costumam andar em grupo, e Kalias e Graver — os piores deles — estavam sempre a rodear o chefe.
- Ah, mas eu estava muito feliz, Seb - comentou Kaden, despreocupadamente - Pelo menos até você se sentar aqui.
Sebastian revirou os olhos, dispensando o comentário com um movimento de mão.
- Não seja tão condescendente - ele riu - Agora que sei que você estará morto até o fim da semana, essas nossas discussões me parecem tão...irrelevantes.
- Exatamente como sempre foram para mim - Kaden deu de ombros - Quanto a minha morte... Não achava que você se preocupasse tanto assim comigo. É bom saber que me tem em tão alta conta.
Os cabelos finos e dourados, de Sebastian caíram sobre o rosto anguloso, quando ele riu debochadamente.
- Me preocupo tanto com você quanto com um dos ratos que moram no teto sob nossas cabeças - ele fez uma careta quando um, particularmente gordo, passou correndo por uma das vigas de madeira apodrecida - Para ser sincero, sua morte me seria bastante satisfatória.
- Idem - a mera imagem do corpo de Sebastian inerte e ensanguentado alegrou o coração de Kaden, ao ponto de fazê-lo sorrir. Como ele seria feliz no dia em que seu rosto sardento fosse destituído daquele sorriso cínico e irritante. A morte de Sebastian seria como arrancar uma pedra grande e incômoda de seu sapato. Nesse dia, Kaden ofereceria um enorme banquete. Talvez ele mesmo o matasse. Por que não, não é mesmo? Enforcamento lhe parecia uma ideia tentadora agora. Ou talvez envenenamento. Era mais limpo, e exigiria menos esforço.
Sebastian estreitou os olhos, do outro lado da mesa. Ele não se sentia confortável com Kaden sorrindo daquela maneira. Principalmente, quando seus olhos estavam fitos de maneira tão sonhadora. Se ele soubesse o que se passava na cabeça de seu inimigo, teria gostado ainda menos.
- Diga - Kaden disse, repentinamente saindo de seus devaneios - Você veio até aqui apenas para dizer que não se importa comigo, ou teria mais alguma pérola de sabedoria para compartilhar?
- Não - Sebastian deu de ombros, com simplicidade - Eu queria apenas me regozijar com seu fracasso, e tudo mais. Na verdade, também queria lhe dizer que será um prazer dançar sobre seu túmulo. Quando será mesmo? Eu acho quinta um dia maravilhoso para morrer.
- É mesmo? - Kaden sorriu perigosamente e sibilou - Pois marque em sua agenda, e morda a língua nesse dia. Pensando bem, se não cair fora daqui agora, eu duvido muito que você dure até quinta.
Sebastian pulou da cadeira quando a adaga de Kaden se fincou na mesa, no exato lugar em que sua mão repousava segundos antes. Ele apertou a mão contra o peito, de olhos arregalados e exalou.
- Você... Você está maluco? - exclamou indignado.
Os ruídos ao seu redor cessaram. Dezenas de olhos - jovens e velhos - se fixaram nos dois, de repente. Esperando a resposta de Kaden, e o desfecho do drama. Até mesmo os ladrões gostavam de um pouco de emoção e fofocas de vez em quando.
Isso não passou despercebido pelo garoto de cabelos negros. Um sorriso preguiçoso de desenhou nos lábios de Kaden. Ele se levantou da cadeira despreocupadamente, e bocejou alto. Seu show estava prestes a começar.
Com vagareza, e delicadamente, ele arrancou a adaga do tampo da mesa, onde se cravara. Era uma peça bonita. Curta, mas extremamente afiada. Com uma dúzia de pequenas safiras esverdeadas cravejadas no punhal. Corriam histórias de que aquela adaga pertencera ao conde de Galin - e que Kaden o havia esquartejado, antes de tomá-la para si, junto da maioria de seus bens valiosos. O rapaz nunca confirmara os boatos. Mas nunca os negara.
O olhar raivoso - embora receoso - de Sebastian se manteve fixo nele. Mais especificamente em suas mãos, em que ele rodava distraidamente e com surpreendente habilidade a adaga.
Todos conheciam a fama de Kaden com as adagas. E pelo que se sabia, ela era mais que merecida. Mesmo não estando desarmado, Sebastian não ousaria se mover. Não parado diretamente na linha de arremesso de Kaden.
- Saia. - Sua voz foi tão cortante como aço.
Sebastian hesitou por alguns segundos. Seu olhar se transformando lentamente em um misto de humilhação e ódio. Kaden o conhecia o suficiente para saber que ele odiava receber ordens. Se havia algo maior que sua arrogância, esse algo era seu orgulho. Seu olhar ardeu com algo mais forte que raiva, mas por fim, ele se virou lentamente, e saiu batendo os pés.
Alguns ladrões não contiveram o riso, ao vê-lo desaparecer pelas portas do salão. Kaden também sorriu. Mas não foi um sorriso genuíno. Foi o sorriso de um líder, que precisava cativar uma centena de ladrões em uma única noite. Alguém que tinha quatro dias para realizar o maior roubo da história de Auderam, e que precisava que todos acreditassem no impossível.
- Tenho a atenção de vocês, meus amigos?
•○•○•○•○•
VOCÊ ESTÁ LENDO
O Príncipe Dos Ladrões - Mirelly Alves
FantastikKaden é um jovem ladrão visionário. Ele audaciosamente planeja o maior roubo da história de Auderam. Seu alvo é ninguém menos que o General Hashim, o manda-chuva de toda a Guarda Real. Mas quando as coisas começam a ir mal, e Kaden vê todo seu plano...