O silêncio reinava no pátio do Quartel da Guarda Real. Os únicos sons a serem ouvidos eram as respirações ofegantes das dezenas de soldados feridos e o arranhar dos cascos de Nox — o garanhão negro do General — no chão ladrilhado do pátio. O cavalo parecia tão inquieto quanto o dono.
— O que está acontecendo? — inquiriu novamente o General. Afinal, talvez ele não soubesse nada sobre o roubo da espada. O que levantava a questão: por que então ele estaria ali tão cedo?
Atrás dele se posicionavam cinco dos melhores soldados do reino. Aquela era sua guarda pessoal e seus melhores homens. Aqueles guerreiros eram lendas. Seus nomes eram Darius, Fallon, Aminos, Corin e Tauron. Eles protagonizavam a maioria dos contos e lendas contados na capital. Eram chamados de Arautos da Morte. Suas espadas já haviam sido a ruína de muitos, amigos e inimigos segundo contavam as histórias. E agora eles estavam ali, prontos para combater qualquer ameaça. Inclusive um pequeno grupo de ladrões que se encontrava em algum lugar dentro daqueles muros.
Julian Bront — o influenciável e tolo soldado que Kaden ludibriara horas antes com nada mais que uma frase aleatória que chegara a seu conhecimento ser de uso frequente de seu ex-mestre, Galbat — deu um passo à frente, pronto para ser útil, e de quebra manifestar sua presteza e utilidade diante de seu superior. Não teve tempo de abrir a boca, no entanto, porque outra pessoa falou em seu lugar.
— Fo-fomos atacados, General. — disse o jovem, com a voz trêmula. Ele estava assustado.
Um corte profundo cruzava seu peito. Sua camisa estava rasgada no local em que fora atingido, e agora se tingia de vermelho.
— Qual seu nome, soldado?
— Eu sou Uriah Vernant, General — mesmo ferido o jovem se curvou em reverência ao superior.
Uriah tinha ombros naturalmente caídos, e parecia se encolher a cada olhar que lhe dirigiam, o rosto corado voltado para o chão. Era notavelmente um garoto tímido e simplório. Trazia um elmo na cabeça e ombreiras, mas o peitoral do equipamento que usava devia ter sido arrancado durante o ataque que sofrera, pois ele não o usava mais. Enquanto falava o garoto retorcia as mãos sem parar, e seus olhos dançavam nervosos.
— Conte-me o que houve. — Hashim ordenou, sem rodeios.
— Estávamos treinando, quando ouvimos duas explosões. Nó-nós não sabíamos o que era, então saímos para o pátio...sabe, para verificar — suas bochechas coraram ainda mais, enquanto ele justificava. — Acontece, que as explosões eram resultado de um vazamento de gás, eu não sei se o senhor já sabe.
O General não sabia, mas acenou para que ele continuasse, arqueando uma sobrancelha. Uriah engoliu em seco, mas prosseguiu.
— Todos começaram a evacuar, como é de se esperar. Pensamos que pudesse haver mais explosões. Ma-mas pouco mais de um terço de nós havia conseguido sair quando um maluco com uma adaga começou a nos atacar. Ele pa-parecia alucinado, senhor. Vestia um traje de mensageiro — o garoto tremia agora — e tinha cabelos escuros. Veio para cima de nós, de repente. Quando percebemos sua intenção já era muito tarde. Além disso, não acho que alguém pudesse detê-lo mesmo. E-ele se movia tão rápido quanto um espírito, e derrubou cinco de nós de uma só vez!
Boa parte dos soldados feridos assentiram, em concordância com o relato conciso de Uriah. Eles tinham olhos arregalados e expressões sofridas, de quem reconhecia a história como verdadeira.
— E você disse que esse... agressor — inquiriu um dos cinco guerreiros, o de cabelos avermelhados e compridos — Ele usava roupas de mensageiro?
— Eu acho que sim.
— E se eu pude entender bem — continuou ele — ele era apenas um homem, contra todos vocês.
— Ou um fantasma — Uriah sugeriu.
— Pois bem — o General bufou — devo deduzir que ele já foi capturado, então?
Uriah fez uma careta, de dor ou de medo o General não saberia dizer.
— Não, senhor — o garoto abaixou a cabeça em sinal de vergonha, mas pareceu lembrar-se de acrescentar — Mas nós interditamos os portões, não creio que ele tenha como escapar.
O guerreiro que falara antes tentou disfarçar uma risada, tossindo. O General lhe lançou um olhar duro, mas ele apenas deu de ombros, divertindo-se.
— Aminos, Fallon e Tauron — Hashim ordenou — revistem o Quartel. Procurem alguém que coincida com essa descrição.
Sem esperar uma segunda ordem, três dos guerreiros saltaram dos cavalos e desapareceram pelos edifícios. Eles se moviam como sombras, e Uriah não tinha certeza se saberia dizer como ou quando eles sumiram de seu campo de visão. Mas era certo que segundos mais tarde ele já não podia vê-los.
Os outros dois guerreiros — um deles era o de cabelos avermelhados, que ainda mantinha resquícios de um olhar zombeteiro — se mantiveram atrás do General, como dois cachorrinhos treinados.
— Precisamos evacuar os feridos, senhor — Uriah ouviu o maior deles dizer. Ele lhe dava arrepios. Seus olhos negros eram frios como o mármore, e sua voz soava como o som de espadas se chocando. Mesmo assim, se dirigiu de forma submissa ao General, esperando sua decisão.
— Leve-os ao palácio. Os curandeiros poderão cuidar melhor deles lá — ordenou Hashim.
— O rei não ficará satisfeito, General — alertou-o ele.
— Isso não importa agora. — Hashim disse ríspido —Não temos como cuidar deles aqui, Corin.
Corin assentiu, mesmo parecendo discordar. Ele obedeceria ao seu General sem resmungar, mesmo se ele ordenasse que ele saltasse de um precipício.
— Os feridos, sigam-me. — a voz fria de Corin sentenciou — Se houver alguém sem condições de caminhar, carreguem-no.
E então o guerreiro virou sua montaria e partiu, sem verificar se alguém o seguiria ou não. Os soldados que precisavam de curandeiros se arrastaram atrás de Corin, alguns sendo carregados por um ou dois companheiros solidários.
Uriah se prontificou a segui-los. O corte no peito parecia profundo o suficiente para receber alguns pontos, e o que ele mais queria era se afastar daquele lugar o quanto antes, e o máximo que pudesse. No entanto, o General o impediu.
— Você não, Vernant. — ele decretou — Não se preocupe. Logo que capturarmos esse delinquente, eu mesmo o levarei ao palácio. Por enquanto, você fica.
O peito do garoto afundou. Gelo percorrendo suas veias, tomando todo seu corpo, até se infiltrarem em seu coração. O coração duro e enegrecido de um ladrão. O coração de Kaden.
Com os ombros ainda curvados e o cabelo escuro escondido pelo elmo, o ladrão viu todos os feridos se retirarem, até restarem apenas ele, o General e mais uma centena de soldados confinados no Quartel. Os portões se fecharam logo em seguida, e ele não pôde fazer nada. Apenas esperar. Esperar pelo quê, era o que ele se perguntava. Talvez por sua morte, o que certamente aconteceria em breve, ele suspeitava.
Para confirmar suas suspeitas, um grito feroz e raivoso cruzou o pátio naquele momento. Um grito de aviso.
— A espada de Dharin foi roubada! — um dos Arautos da Morte rugiu, sua sentença seguinte foi digna de seu título — Matem os ladrões.
Kaden não pôde evitar o gemido baixo que escapou de seus lábios. A descrença estampada em seu rosto. Ele sabia que não demoraria a todos chegarem à conclusão óbvia. Não demoraria a perceberem que não existia nenhum Uriah Vernant, e nunca existira. Então se preparou para fazer o que sempre fizera de melhor: fugir. Mesmo que não tivesse chances reais. Mesmo que estivesse rodeado de espadas, soldados e muros altos por todos os lados. Ele não morreria parado. Enquanto houvesse fôlego em seus pulmões, ele lutaria.
Antes que ele pudesse dar dois passos, no entanto, uma sombra enorme se pôs em seu caminho. O General desmontara do cavalo, e agora interditava sua passagem com um olhar medonho e ameaçador. Ele ergueu a espada acima da cabeça — fitando o garoto fixamente, furioso —, e Kaden fechou os olhos, por reflexo — afinal, parecia que morreria quieto, como um covarde. A pancada veio em seguida, e a morte o recebeu com seus braços gélidos e sombrios.
○•○•○•○•○•○•○•○•○
Khia e Tove só puderam respirar novamente quando já estavam do lado de fora dos portões. Uma diminuta fila de feridos se arrastava à sua frente e costas. Uma imagem mórbida, e predominantemente carmim. Rostos sofridos, gemidos lamuriosos. Quase uma dezena de soldados, a maioria com sangue pingando de mais de um lugar. Sebastian relaxou nos braços dos dois ladrões mais velhos, e suspirou, apesar de tudo.
— Essa foi por pouco — ele ofegou. Sua pele estava pálida e suor descia de sua testa. Khia começava a se preocupar com a gravidade do ferimento. Talvez ele houvesse contraído uma infecção ou algo assim. A mulher lançou um olhar nervoso ao círculo carmim que se ampliava cada vez mais na perna direita das calças do garoto.
O portão se fechou atrás deles com um baque surdo, sobressaltando os três ladrões.
— Kaden ainda está lá — Tove engoliu em seco. Ele não tinha certeza de como se sentia ao abandonar o garoto, mesmo que por apenas alguns minutos. Tinha um pressentimento ruim quanto àquilo.
— Tenho certeza de que ele vai conseguir sair. — Khia tentou soar despreocupada — Esse é o plano dele. Ele sabe o que faz.
— Ou ao menos finge saber — Sebastian deu de ombros, os olhos levemente desfocados.
Um silêncio incomodo e preocupado se instaurou entre eles. Sebastian pareceu desmaiar, sua cabeça pendendo dos braços de Tove em um ângulo estranho. As pernas longas e esguias sendo carregadas por Khia. O silêncio só foi rompido para confirmar os temores e a frase agourenta de Sebastian.
— Matem os ladrões! — a voz colérica detrás dos portões bradou.
VOCÊ ESTÁ LENDO
O Príncipe Dos Ladrões - Mirelly Alves
FantastikKaden é um jovem ladrão visionário. Ele audaciosamente planeja o maior roubo da história de Auderam. Seu alvo é ninguém menos que o General Hashim, o manda-chuva de toda a Guarda Real. Mas quando as coisas começam a ir mal, e Kaden vê todo seu plano...