Capítulo 4

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O sol brilhava radiante no céu de Auderam. Kaden assoviava despreocupadamente enquanto caminhava pelas ruas movimentadas. Numa manhã como aquela todos pareciam sentir-se impelidos a sair de casa. O ar soprava do norte, deliciosamente refrescante, trazendo para as ruas de Cavya, a capital de Auderam, o cheiro de água salgada. Os pássaros cantavam da copa das macieiras e pereiras, belas e frutíferas árvores que o antigo rei, Dharin, trouxera de países distantes para a capital. Agora, anos depois de sua morte, elas ainda forneciam alimento e sombra para o povo que serpenteava pelas ruas.
Aquelas árvores eram apenas mais uma prova do gigante contraste entre os governos dos irmãos Northead. Num cenário geral, vinham logo depois dos impostos abusivos, das execuções desnecessárias, da ganância do rei e de seu prazer em ver o reino definhar. "Nos tempos de Dharin as coisas eram diferentes", as pessoas sussurravam às vezes. Mas nunca passava disso: sussurros. Orloch Northead já executara pessoas por muito menos que isso. Até mesmo membros de sua própria corte já haviam sido degolados, apenas por ousarem criticar seu governo, ou compará-lo ao irmão. Orloch podia ser chamado de muitas coisas, mas piedoso não era uma delas, sem sombra de dúvidas.
Uma senhora simpática e de cabelos grisalhos passou ao seu lado anunciando leite, queijos, e um tipo de bebida fermentada escura, que ela garantia ter algum tipo de vitamina fortificante. Kaden sorriu para ela, que retribuiu o gesto. Seu sorriso se alargou ainda mais, e seus olhos brilharam ao ver o garoto tirar uma moeda de cobre do bolso da camisa.
Kaden comprou um frasco da bebida láctea e a senhora agradeceu-o antes de continuar seu percurso. Ele deu um gole e sentiu o sabor adocicado e levemente picante inundar seu paladar. A senhora devia ter razão sobre a bebida porque, de repente, o garoto parecia sentir-se ainda mais forte e revitalizado. Invencível até.
Quatro dias haviam se passado desde a reunião dos ladrões. Kaden, Tove, Khia, Onye e Sebastian tiveram longas horas de planejamento cuidadoso e conversas minuciosas durante esse tempo. Sebastian, se mantinha como sempre, irritante. Onye parecia uma fonte infinita de tagarelice, mas apesar disso, se revelou extremamente útil e motivada. Khia era muito discreta em tudo que fazia, o que era bom, considerando que ela era uma ladra. Ela se revelara uma lutadora e esgrimista habilidosa, o que viria a calhar aos planos do grupo. E Tove... era o ser mais pessimista que Kaden já conhecera. Durante dois dias a fio ele criticou e apontou falhas em cada ideia de que Kaden levantava...O que acabou sendo muito produtivo. O Grandalhão estava certo. Qualquer falha — por menor que fosse — no plano, e os caçadores se tornavam caça em questão de segundos. Naquele dia em especial, os ladrões não tinham a opção do erro. Eles tinham que ser extremamente meticulosos, e nada menos que perfeitos.
Por isso, Kaden continuou a representar seu papel, enquanto caminhava descontraidamente pela rua. Ele estava vestido com calças e túnica azuis escuras, da cor do céu da meia-noite. No peito, trazia bordada a insígnia real dos mensageiros: uma águia dourada, repousando magnânima e com olhar altivo sobre o punho de uma caneta tinteiro.
Era interessante a forma como as pessoas pareciam gentis com ele, refletiu enquanto depositava a garrafa vazia dentro de um dos latões de lixo enferrujados que ladeavam a rua. Não com Kaden, o garoto órfão, o ladrão. Mas com o mensageiro real, com o rapaz que vestia a insígnia nobre. No órfão eles cuspiam e xingavam ou, no mínimo, ignoravam. Mas para o mensageiro, eram todos sorrisos e simpatia.
Ainda estava pensando nisso, quando algo o atingiu certeiramente no peito. Por um segundo, temeu que houvesse sido descoberto. Sua mão voou em direção à adaga que carregava escondida, mas ele se deteve antes de alcançá-la. Duas mãos delgadas — nada parecidas com a de um soldado — se agarraram nele para se firmar de pé. A cabeleira negra atingiu seu rosto com o perfume de rosas silvestres e pêssegos, enquanto a garota cambaleava corada.
— Ah! Mer... Quer dizer, me desculpe. — Ela resmungou, e Kaden não teve certeza se ela falava com ele ou com si mesma.
Quando ela finalmente se equilibrou sobre os pés e ergueu os olhos para encará-lo, Kaden fitou os mais estranhos e extraordinários olhos que já havia visto. Algumas pessoas — a maioria garotas, ele devia admitir — já haviam lhe dito que ele tinha olhos bonitos. Mais suas íris azuis gélidas em nada se comparavam ao tom vivo e efervescente de lilás que tingia os olhos da garota. As sobrancelhas negras que os emolduravam os tornavam ainda mais exóticos.
— Você perdeu alguma coisa? — ela cerrou os lábios, incomodada — Pare de me encarar assim, ora essa!
Kaden se empertigou, saindo do transe em que os olhos hipnóticos dela o haviam mergulhado. Por um momento, quase havia se esquecido de seu personagem.
— Mil perdões, lady... — ele esperou que ela dissesse seu nome.
A garota bufou, desviando os olhos, mas resmungou à contragosto.
— Athara.
— Lady Athara — ele testou como o nome soava em seus lábios, e pensou consigo mesmo que ele combinava perfeitamente com a garota tempestuosa — Eu decerto deveria ter olhado melhor por onde ando. Da próxima vez que a senhorita desejar me atropelar, eu prometo que vou me esquivar.
Os olhos de Lady Athara pareciam prestes a incinerá-lo, e foi quase impossível para ele se manter sério, enquanto ela o fitava daquela forma fulminante. Seu vestido volumoso e carmim se agitou enquanto ela batia o pé no chão de fora autoritária.
— Olhe só, eu não o atropelei — suas faces rosadas coraram com a mentira deslavada e ela pestanejou irritada antes de soltar. — A culpa toda são desses malditos sapatos! Você já tentou andar com essas coisas? Pois eu lhe digo, que eles não são nada práticos.
Só então, Kaden dirigiu os olhos para os pés da garota. Lá estava — semiocultos pelas barras do vestido comprido —, um par de sapatos, tão vermelhos como sangue, e mais altos do que qualquer outro que já vira. Kaden imaginou que se pareciam mais com dois objetos de tortura do que com calçados. Os pés da garota se esticavam de forma dolorosa dentro deles. Era verdade que ninguém deveria ser obrigado a usar uma coisa daquelas.
— Receio, milady, que eu nunca tenha tentado andar com nenhuma dessas coisas, como a senhorita disse — agora seu tom era totalmente zombeteiro, e ele se repreendeu por falar assim, com alguém que pertencia claramente à nobreza — Eu a carregaria até em casa sem hesitar se pudesse, mas, infelizmente, tenho uma mensagem urgente para entregar.
— Ora, seu... — ela quase lhe disse algumas coisas impróprias para uma dama de sua classe, mas se calou antes disso e respirou fundo, lançando uma olhadela à insígnia dos mensageiros em seu uniforme.
Aquilo não a intimidava em nada. Como filha de seu pai, sua posição estava muito acima de um mensageiro. Tão acima, que ele devia ter cuidado ao zombar dela assim. Se ela fosse um pouco menos piedosa, teria mandado que os guardas o levassem agora mesmo para o castelo. Tinha certeza de que o rei ficaria feliz por ter alguém para chicotear, além dos empregados da cozinha. Mesmo assim, não perderia seu tempo, ou sua dignidade, por causa de provocações de um rapaz mal-educado como aquele.
— Espero que mostre mais respeito pelos outros, enquanto exerce sua profissão — sua voz destilava ódio, e ela acrescentou, ao notar para onde o mensageiro parecia se dirigir — E se puder fazer a gentileza, diga ao capitão Hashim, se por acaso o vir, que meu pai manda lembranças, e espera que ele nos visite em breve.
Kaden sabia que aquilo era uma provocação, mas perguntou mesmo assim.
— Eu poderia saber quem é o seu pai, milady?
— O Duque de Bryer.
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O Príncipe Dos Ladrões - Mirelly AlvesOnde histórias criam vida. Descubra agora