Somnium

Capítulo IV

De madrugada, Amélia esperou pelo sono repassando mentalmente imagens de todos os sonhos que já tinha tido até aquele momento. Ela já havia sido Annette, segura de si e disposta a largar tudo para uma vida melhor, mas também já foi Elizabeth, que era tímida e submissa ao que seus pais desejavam. O foco sempre rodava em torno de Ethan, ou melhor, de Don, Sebastian, Dominic, entre tantos outros, por esse motivo seu conflito maior era em entender o motivo de ele aparecer em Beaugot, mas ela também não compreendia quem eram aquelas pessoas que vivenciava por baixo da pele. Será que qualquer um deles já existiram assim como Ethan? Com vidas muito mais agitadas que a sua na maioria das vezes, gostaria de saber se em algum momento ela mesma também já tinha os visitado durante a noite.

Amélia e Victoria estavam deitadas em um colchão improvisado no piso de madeira do quarto de Erin. O último pensamento de Amélia antes de adormecer foi a curiosidade de saber qual história iria viver quando fechasse os olhos. Entretanto, quando a manhã chegou e Amélia despertou, a garota se deparou com um vazio na memória. Na verdade, aparentemente ela não tinha sonhado com nada. Nada depois de meses acordando com tantos detalhes vívidos para elucidar. Foi a primeira vez em muito tempo que ela tinha uma longa noite de sono sem interrupções, a sensação era estranha.

Quando se sentou, percebeu que a causa de seu despertar era um pequeno feixe de luz que invadia o quarto por uma fresta da cortina. Amélia não sabia se o fato de estar em um lugar diferente anulava os sonhos ou se isso era uma mera coincidência, mas caso realmente houvesse algum efeito, deveria ter dormido fora nas vezes em que queria apenas uma noite tranquila.

O quarto de Erin tinha mudado várias vezes ao longo dos anos. Quando tinham 8 anos, A Princesa e o Sapo era seu filme favorito, as paredes tinham sido pintadas de verde-claro e adesivos e decorações temáticas do filme estampavam cada canto. Agora, as decorações de princesa tinham sido substituídas por vasos de plantas e estantes de livros, mas as paredes tinham um tom quase idêntico ao mesmo verde do passado e fazia Amélia se sentir nostálgica.

Em poucos minutos, Erin e Victoria também acordaram, Amélia sentiu-se aliviada por não ficar sozinha junto com sua angústia por não ter sonhado. Victoria tinha acordado mais calma do que estava ontem. Quando levantaram para se arrumar, continuavam com os mesmos costumes de quando eram crianças: enquanto uma tomava banho, as outras escovavam os dentes e preparavam as mochilas, assim revezavam. Foram para a escola no Jeep cinza de Erin.

- Vocês estão animadas para a festa hoje? – Victoria perguntou.

- Você tem certeza que quer ir? Caso queira ficar em casa, por mim tudo bem. Nós fazemos companhia – Erin respondeu cautelosa.

- Jamais! Vamos apenas esquecer o que aconteceu ontem, ok? Já passou e pode ter sido uma pessoa qualquer sem intenções ruins. – Apesar de ser uma possibilidade ínfima, Amélia tinha um pressentimento ruim quanto aquela situação.

- A Erin está certa, nós podemos ficar em casa vendo filmes e fazemos alguma receita – Amélia sugeriu, aquele era seu passatempo favorito de quando tinham 14 anos e realmente sentia saudade disso.

- Nada disso, nós vamos na festa hoje e vamos curtir o máximo possível – Victoria teve a palavra final.

- Você ainda quer nos contar o que tinha intenção, Amélia? – Erin perguntou. O susto com Victoria tinha sido tanto que, para Amélia, sua intenção de revelar aquela parte de sua vida parecia ter ficado há muito tempo no passado e não apenas no dia de ontem.

- Não era nada demais, apenas alguns problemas com meus pais. Em outro momento eu falo melhor - decidiu q era melhor continuar mentindo.

Era dia 31 de outubro e quando chegaram na escola vários alunos estavam trajando fantasias. Na escadaria que ligava o estacionamento à entrada principal se depararam com o Freddy Krueger dialogando com uma princesa e Amélia achou a cena cômica. Ela gostava de se fantasiar e ver até onde chegava a criatividade das outras pessoas, por esse motivo adorava o dia das bruxas e não podia negar que estava ansiosa pela festa desde o momento em que recebeu o convite. Entretanto, agora que Victoria tinha convidado Ethan, o frio na sua barriga não consistia em esperar apenas por momentos agradáveis, e sim pelo desconhecido da sua presença em um lugar diferente.

A aparição de Ethan na escola sempre era uma surpresa. Hoje não teve aula de literatura e não o achou nos corredores ou durante o intervalo. No entanto, a última aula que teria no dia seria educação física, era a única que reunia todos os alunos do mesmo ano e a mais provável de vê-lo.

No vestiário feminino, Amélia se trocou, substituindo o moletom verde-escuro e a saia jeans pelo uniforme de mangas curtas branco e uma calça legging preta, ambos estampavam o logo representativo da escola: uma coruja. O resto das colegas se vestiam como ela.

- Tomara que essa aula passe rápido – Amélia disse para Victoria assim que pisaram no gramado.

Pelo menos o clima naquele dia estava bom, Amélia pensou, o sol estava presente junto de uma brisa fresca, não passaria calor nem frio ao ar livre.

A quadra da Owls of Beaugot High School era grande o suficiente para fadigar qualquer um que decidisse correr uma volta inteira e essa era a obrigação de toda aula. Uma extensa arquibancada laranja que ficava cheia nas noites de jogos contornava o perímetro e agora estava vazia exceto por poucos alunos que esperavam pelo início da aula e outros que se aqueciam. Há alguns passos de Amélia e Victoria, alguns colegas aguardavam em pé, as duas se aproximaram e, assim que os rostos se tornaram mais perceptíveis, Amélia estremeceu quando viu Ethan conversando com Erin.

- Oi, gente – Victoria falou com naturalidade, Amélia às vezes se esquecia que era a única a ter problemas com Ethan. – Como vocês vão?

Ethan estava usando uma camisa preta e uma calça moletom cinza, provavelmente ele ainda não tinha o uniforme que consistia numa versão masculina do traje com a legging sendo substituída por uma calça moletom. Ele tinha prendido o longo cabelo num coque malfeito e Amélia precisou de esforço para reprimir seus próprios pensamentos, era primeira vez que ela o via depois de sonhar com Annette e Don.

- Olá, está tudo bem. Estava explicando pro Ethan como funciona a aula – Erin respondeu.

- A tortura do professor Mint, você quis dizer? – Victoria brincou.

- Nem fala isso, faz tanto tempo que eu não me exercito. – Com o físico de Ethan, Amélia duvidava muito.

- Boa sorte, então. Pelo menos você não está sozinho, esse é o único momento em que eu e Amélia mexemos nossas bundas – Victoria brincou e Ethan deu risada.

O professor Mint enfim apareceu, era um homem de meia-idade com entradas no cabelo e mais baixo que qualquer um de seus alunos do ensino médio. Ele costumava passar as tarefas mais inoportunas e qualquer um que se recusasse a participar de suas aulas não conseguia terminar o ano aprovado, esse era o único motivo para Amélia tirar seu tênis de ginástica de casa.

- Bom dia, alunos. Vamos iniciar sem enrolação. Quero que as meninas deem 4 voltas na pista começando pelo lado esquerdo e os rapazes devem fazer o mesmo pelo lado direito. Sem conversinhas, combinado? Vou cronometrar o tempo.

Dois grupos se formaram em cada canto, as garotas se reuniram em um aglomerado com três pessoas em cada fila para que quando encontrassem com os colegas do lado oposto não esbarrassem uns nos outros. Era raro que Mint deixasse os próprios alunos escolherem seus grupos e, justo agora que Amélia não tinha a mínima vontade de escutar Victoria e Erin falando sobre Ethan, tinham ficado juntas.

- E aí, sobre mais o que vocês falaram? – perguntou Victoria assim que começaram a se movimentar.

- Eu perguntei sobre a festa. – Erin era a única das três que não tinha dificuldade na hora dos exercícios, frequentava uma academia regularmente.

- Ele vai? – a curiosidade de Amélia se revelou.

- Sim. – Não era a resposta que ela gostaria de ouvir – Eu ofereci carona, mas ele disse que vai sozinho.

Na direção oposta do gramado estava o grupo de garotos correndo, Amélia olhou para Ethan e se perguntou como iria ser aquela noite, tinha uma sensação que seria desastrosa.