Everything Has a Purpose

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Devon, Inglaterra. 2025.

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         Uma vez, quando eu era bem pequena, minha mãe me contou uma história que tocou o meu coração. Não me lembro exatamente de achar que tinha um, mas as pulsações exageradas que surgiram após ouvir o desfecho confirmou as minhas suspeitas. Ela disse que em sua infância houve uma garotinha muito sapeca chamada Rae Esparza. Uma latina-americana migrada de Cuba. Ela e sua família moravam de favor na casa de uns donos de uma rede de pizzaria, trabalhavam de empregados em tempo integral e a menina só estudava na escola em que minha mãe frequentava porque o tal patrão a bancava como parte do pagamento.

          As duas se tornaram melhores amigas de cara, já que a xenofobia excessiva impediu a pequena Rae de fazer novas amizades. Minha mãe até sorri ao lembrar do quão engraçado era o seu sotaque e que haviam algumas palavras nas quais ela não conseguia pronunciar. Teve que aprender inglês na marra, na base do convívio, o que não foi nada fácil e a rendeu muitos momentos constrangedores em público, mas mamãe a ajudou. Elas se ajudaram muito, na verdade. Ao longo dos anos. Minha mãe iniciou o ensino médio aos quinze e Rae a acompanhou, caindo as duas na mesma turma outra vez.

          Já na adolescência, ambas começaram a se meter em confusão. Minha avó chegou a me contar isso algumas poucas vezes, sempre taxando a minha mãe como "uma fera indomável", e por isso que, segundo ela, tive a quem puxar. As duas matavam aula, entravam de penetra na escola dos outros em dia de feira de ciências, comiam nas lanchonetes e saíam sem pagar... Coisas que renderam altos aborrecimentos aos pais.

           Por ser o início dos anos 90, os Backstreet Boys eram febre em todo canto, Michael Jackson ainda era sucesso nas paradas, Friends estreava conquistando o coração de todo ser vivente que assistisse às tardes na TV e a maior moda era usar casaco de time de baseball e sair com caras cabeludinhos. Foi numa dessas idéias que a minha mãe descobriu algo que mudaria sua vida para sempre. Pois numa noite em que marcou de sair para uma poolparty (festa na piscina) com a Rae, decidiu passar na casa dela mais cedo para se arrumar e as duas acabaram se beijando. É óbvio que quando uma criança de nove anos de idade ouve isso pela primeira vez, fica no mínimo estática, sem saber o que opinar. Mas minha mãe soube me fazer entender ao contar os detalhes do ocorrido.

           Que algo "estranho" rolava entre elas, isso era fato. Geralmente, minha mãe desaprovava todos os garotos que a Rae arrumava. A Rae tinha ciúmes da minha mãe com qualquer pessoa que não fosse ela e nem tentava disfarçar. E num único momento de coragem no qual as duas ficaram frente a frente, aproveitando para checar os diversos tipos de brilhos labiais que tinham para experimentar, chegaram mais perto do que o planejado e se beijaram. Minha mãe pontua o horror que foi. Não em relação ao beijo em si, mas em relação ao pós, pois além de cubana, Rae era católica fanática e abominava qualquer tipo de prática que a bíblia denominasse pecaminosa. Seus pais também eram meio rígidos, e isso contribuía para que sua mente fosse um pouco fechada. Ou seja, depois desse simples e inocente beijo, veio o desastre. Rae começou a se sentir culpada e achou melhor se afastar da minha mãe. 

            Elas foram para a festa, apesar de tudo, mas separadas. Lá a cubana pegou todos os rapazes que a deram chance numa tentativa fajuta de se "desintoxicar", e minha mãe apenas assistiu, arrasada. Nessa mesma noite ela também conheceu o meu pai, um fanfarrão que curtia snowboard e tinha trancado os estudos para tentar seguir carreira musical, o que obviamente não deu certo. Eles ficaram, claro! Mas não foi depois dessa ocasião que eu nasci, afinal, minha mãe focou em passar as próximas seis semanas tentando se reaproximar de Rae a todo custo: ligando, mandando um fax, cartinha, recado e o que mais desse. Mas a cubana apenas a ignorou friamente.

Com amor, Emily - O fim é só o começo [2ª Temporada]Onde histórias criam vida. Descubra agora