Capítulo II

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Galway, Irlanda 1870

  Meu aniversário havia sido comemorado a dois dias, meus pais foram com Winnie para Malahide oficializar o noivado dela com o Lorde Liam Campbell, a família Campbell morava em Malahide perto de Dublin, por isso foram para lá.
  Já era tarde, todos estavam dormindo, minha única mala de mão já estava pronta em baixo da cama com somente o necessário. Eu tinha um dinheiro guardado que tinha recebido de presente de aniversário, pelo que ouvi de alguns comerciantes aquilo daria por um tempo se eu economizasse. Meus planos eram ir para Dublin, passei anos estudando tudo sobre aquela cidade maravilhosa cheia de pessoas e tão alegre. Eram mais ou menos de dois a três dias de viagem a pé até Dublin, sei que é muito arriscado para uma dama que nunca saiu da própria cidade ir tão longe, mas é preciso. Peguei o mapa do papai no escritório, sabia exatamente por todos os lugares em que teria que passar até chegar à Dublin. Por sorte estávamos no final de novembro então ainda não estava tão frio, teria que enfrentar o vento gelado no caminho, mas sobreviveria.
   As velas estavam todas apagadas exceto a que eu usava para conseguir me movimentar. Fui até o quarto das minha irmãs e me despedi de cada uma silenciosamente. Deixei uma carta para todos da minha família, a carta da minha mãe estava marcada por algumas gotas de lágrima que não consegui conter. Eu cresci naquela casa, me escondi atrás de todas as cortinas, cai em todas as escadas e sorri pelo menos uma vez em cada lugarzinho daquela construção cujo a qual sempre vai ser o meu lar. A casa Calaham estará sempre em meu coração, talvez o sobrenome não permaneça em meu nome para sempre, mas nunca deixarei de ser uma Calaham.
   Sai de casa sem olhar para trás, a brisa fria de novembro me pegou logo que sai, afagou meus cabelos e eu sabia que havia deixado minhas bochechas geralmente brancas, vermelhas. Segui com uma lamparina em uma mão a mala na outra. Andei por umas duas horas, ainda sabia aonde estava, Roscam. Já estava amanhecendo, o orvalho já era visível sob a grama e as árvores. Encontrei uma taverna, parecia um lugar decente demais para ser uma taverna, mas como já estava faminta resolvi entrar.
Quando abri a porta me deparei com um lugar não muito cheio, com homens simplesmente bebendo e comendo sem grandes sinais de depravação ou libertinagem por mais incrível que pareça. Fui até uma dama que estava servindo a um senhor o que deveria ser sua quinta garrafa de vinho.
- Com licença, será que poderia me ajudar? - ela me olhou surpresa, realmente não entendi o espanto, havia mais mulheres no local, mas então ignorei isso e segui em frente. - bem eu estou viajando e gostaria de algo para comer.
- Ah-éh-éh claro. Venha comigo, tenho uma mesa para a srta se desejar. - ela era surpreendentemente gentil para uma mulher que é obrigada a servir homens arrogantes e bêbados.
- Ah claro, adoraria. - logo que me acomodei em uma mesa solitária no interior da caverna me dei conta do quão longe de casa já estava, não tanto pela distância, mas pela diferença de ambiente. Agora já não podia mais voltar atrás, era a primeira vez em que entrava em uma taverna de verdade, e tudo o que sabia eram histórias que ouvi de comerciantes.
- Bem, gostaria de comer o que? Temos sopas, pães e muita cerveja e vinho. -
- Adoraria uma sopa.
- Claro, fique à vontade, e qualquer coisa grite, tente se manter longe daqueles senhores a esquerda, tendem a ser violentos depois da quinta garrafa.

  Depois de um certo tempo minha sopa chegou, por sorte eu estava faminta, porque a cara não estava muito boa. Tudo estava aparentemente tranquilo, já havia amanhecido totalmente e os homens que estavam lá quando cheguei já estavam indo embora. De repente ouço o que parecia ser uma discussão, um senhor alto de cabelos negros e barba rente discutia sobre o que pareciam ser negócios com o taverneiro. O dono da taverna por fim pareceu inclinado a aceitar a proposta do outro senhor. Até que ouvi que eles falavam algo sobre Dublin, foi então que a conversa me interessou. Cheguei um pouco mais perto com a intensão de pagar por minha refeição e ouvir a conversa. O taverneiro interrompeu a conversa com o outro senhor e me perguntou o que queria.
- Bem, eu gostaria de pagar por minha refeição. - mais uma vez pareceram espantados quando comecei a falar.
- Ah claro, a senhorita não é daqui, não é? - não entendi muito bem o interesse em de onde eu vinha, mas só respondi que não e paguei a quantia que ele me passou.
- Com licença senhor, mas penso ter ouvido dizer que vai para Dublin? - foi então que o senhor alto de cabelos negros me fitou pela primeira vez, seus olhos eram tão negros quanto seus cabelos. Tinha um olhar intenso e profundo.
- Sim, ouviu certo. Estou seguindo viagem para Dublin, mas por que o interesse? -
- Bem eu estou indo para Dublin, mas é minha primeira vez na estrada então estou um tanto perdida. - fui interrompida pelo taverneiro que se dirigiu ao senhor a minha frente dizendo:
- Brendon, vai ou não pagar o que me deve? - ah então o senhor misterioso se chamava Brendon.
- Gunter, tenha paciência meu caro, irei lhe pagar, mas no momento estou sem esse dinheiro comigo. - o taverneiro então citou o quanto o Sr Brendon lhe devia e por acaso eu tinha esse dinheiro, foi então que eu tive uma ideia um tanto arriscada mais que poderia dar certo e toda quantia gasta seria um investimento.
- Senhor Brendon, estou disposta a lhe pagar a quantia que deve ao Sr Gunter se me levar até Dublin. - ele me pareceu surpreso, e claro que pensou estar lidando com uma louca que não tem medo do perigo.
- Vamos Brendon, aceite logo a proposta da moça e me pague! - vi que o Sr Brendon se sentiu pressionado pois se virou para mim e disse:
- Está certo, eu te levo a Dublin.

Lhe paguei a quantia  e então saímos da taverna, o dia estava com o típico clima irlandês, frio, úmido e o sol ainda se escondia entre as colinas no horizonte. Mais uma vez me lembrei de casa e o aperto no peito foi inevitável, lembrei-me de Brenna que assim como eu sempre teve fascínio pelos campos irlandeses e adoraria estar vivendo essa aventura em que me vejo agora. Devo isso a ela, não posso levá-la comigo, mas posso aproveitar cada momento por ela. Pela primeira vez desde que saímos o tal senhor Brendon se dirigiu a mim dizendo:
- Está pensando em algo? - fui tirada de meus devaneios e o vi me fitando com certa curiosidade.
- Sim. - disse sem mais.
- Como se chama? - até que enfim uma pergunta sensata a qual eu poderia responder sem sentir-me perdida.
- Bem sou Annelise Grace Calaham.
- Interessante, sempre tive um interesse especial por nomes, eles dizem muito de quem somos, tem algum fato especial sobre seu nome srta. Calaham?
- Hm, bem meus pais me disseram que que meu segundo nome é Grace por conta da lenda da pirata Grace O'Malley. - essa história já ouvi mil vezes, minha mãe adorava contar-me sobre as muitas histórias de Grace O'Malley enquanto tentava domar meus cabelos em algum penteado descente.
- Grace O'Malley, quem não conhece essa história, não é? Tem algo de parecido com a grande pirata srta. Calaham?
- Minha mãe sempre diz que nós temos a maestria em comum. Mas nunca entendi o porquê da comparação. - isso o fez rir, notei que por trás daquele olhar profundo que o deixava muito sério, existia um sorriso travesso que o deixava parecido com um garotinho.
- Às vezes há coisas sobre nós que não somos capazes de compreender. -
- Mas então, como você se chama? - ele estava com as duas mãos cruzadas nas costas e trajava um sobretudo preto que o deixava ainda mais alto.
- Me chamo Brendon Liadan.
- O que faz por aqui senhor Liadan? -
- Sou dono de algumas tavernas em Dublin, estou aqui a negócios.
- Algumas? Muito me espanta o dono de 'algumas' tavernas não ter consigo dinheiro suficiente para pagar um taverneiro.  - ele parou de andar, percebi que já estávamos um tanto longe da taverna, e me olhou estarrecido, porém ao me responder sorriu novamente:
- Bem, acabei de fazer alguns negócios em uma outra taverna por isso o que me restou é só o suficiente para a viagem.
- Entendo.
- Me diga srta. Calaham, por que deseja ir para Dublin? E claro, de onde a srta. é?
- Sou de Galway, não fica muito longe de Roscam. Estou indo pra Dublin pois sempre fui fascinada pelas histórias que todos trazem de lá.
- Pelo que vejo, é sua primeira vez na estrada, não é?
- Sim, mas como sabe?
- Primeiro, a srta. disse isso enquanto estávamos na taverna, segundo, nenhuma pessoa experiente, principalmente uma dama confiaria tão facilmente em estranhos para as acompanharem em viagens como está.
- Minha inexperiência estava tão visível assim? E devo me preocupar em ter sua companhia Sr Liadan?
- Não se aborreça, teve a sorte de encontrar alguém que sabe exatamente pelo que está passando e pode ajudá-la. E não, não tem com o que se preocupar - ele disse tentado enxergar algo no horizonte.
- Perdão, mas o que quer dizer com "saber exatamente pelo que estou passando"?
- Quantos anos tem senhorita?
- Completei dezenove a poucos dias.
-  Sai de casa com dezessete, sem saber muito sobre a vida e com um destino incerto a minha frente.
- De onde vem senhor Liadan? - a pergunta me pareceu necessária, já que por algum motivo ele escolheu contar-me sobre seu passado.
- Sou de Cork, está ao sudoeste da Irlanda. Cresci lá, minha família ainda está toda lá.
- Por que saiu de Cork, por que deixou a família pra trás e por que Dublin? - senti-me como uma criança por fazer tantas perguntas, mas era inevitável.
- Já vi que estou lindando com alguém que assim como eu vive em busca de respostas. Pois bem, sai de Cork porque já não sentia que meu lugar fosse lá, minha família é muito apegada a tradições e muito rigorosa quanto às regras, e percebi que aquelas tradições não cabiam a mim como cabia a eles. Então decide sair de lá e o preço foi ter que deixar minha família. De primeira instância não pensei em nenhum lugar para o qual pudesse ir, passei por muitas cidades, trabalhei em muitos lugares  até que por fim cheguei em Dublin. A cidade logo me consquistou, Dublin faz isso com as pessoas, comecei a trabalhar em uma taverna, vi que tinha vocação para aquilo, trabalhei por algum tempo, encontrei um sócio e por fim abri minha primeira taverna. -
- E qual o nome dela? Sabe, ouvi uma vez que o nome diz muito sobre quem somos. - consegui fazê-lo rir mais uma vez, aqueles olhos tão profundos combinados ao sorriso experiente criavam a combinação perfeita.
- Pasme, minha primeira taverna se chama Grace, por conta da pirata Grace O'Malley. Pois é srta. Calaham, vejo que temos muito em comum.

Uma Jornada em Busca da Liberdade por Milena Milão Onde histórias criam vida. Descubra agora