Capítulo VII

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Athenry, Irlanda 1870

  Acordei com a luz do sol invadindo meus olhos, assim que me sentei na cama senti uma dor indescritível na minha cabeça. Cada mínimo som por mais distante que fosse me incomodava profundamente, me arrependi de abrir os olhos pois a luz só fez minha cabeça doer ainda mais. Mas quando olhei para o lado, com um pouco de dificuldade confesso, vi Brendon dormindo na poltrona próxima a cama. Ah meu Deus, além de passar por todo o constrangimento de ter ficado bebada ainda o fiz dormir em uma poltrona que convenhamos não era das mais confortáveis.
  Um gosto amargo me lembrou do meu estado atual, creio que fel é o que mais se aproxima. Me sentia destruída, Deus, como seguiria viagem nessas condições?
Fui até o lavabo e lavei meu rosto na esperança de ficar um pouco mais apresentável e lutei contra os meus cachos que decidiram lutar por liberdade justamente hoje. Olhei-me no espelho e me senti até descente, perto do estado em que me encontrava assim que acordei.  Desci até o saguão e com uma dificuldade causada pela náusea tomei um café da manhã que por sinal, até para mim que não estava sentindo nada além do amargor em minha boca, estava delicioso. Pedi uma bandeja para a camareira e peguei algumas coisas que achei que Brendon gostaria. Quando cheguei ao quarto ele já estava acordado e aparentemente "pronto":
- Bom dia, você está muito bem para quem está de ressaca - ele disse com um sorriso de quem já passou pelo mesmo e confesso que seria muito interessante ver Brendon Liadan bebado.
- Minha cabeça dói pra...você sabe e eu me sinto levemente destruída, porém creio estar me saindo bem. Ah e eu desci até o saguão e peguei tudo o que vi pela frente já que não sabia do que você gostaria, é um agradecimento por ter me ajudado ontem... -
- Ah, disponha. Já lidei com situações muito piores, acredite homens tendem a beber cinco vezes mais e ficam vinte vezes pior. - comecei a pensar em quantas situações do tipo ele já esteve, por trabalhar em um taverna.
- Mas então, creio que devamos seguir viagem, não é? Acho que não estamos nem na metade do caminho ainda... -
- Realmente, não estamos. Supondo que não façamos nem uma parada, o que vai ser impossível, temos mais pelo menos um dia e meio de viagem. - ele disse enquanto comia um bacon e já colocava ovos em seu prato acompanhado por uma fatia de pão.
- Então, assim que terminar seguiremos viagem, tudo bem? -
- Acha que está bem o suficiente para seguir viagem? - tudo bem que ele nem se dignou a levantar os olhos do prato para perguntar, mas pelo menos foi gentil em pensar nesse ponto.
- Não no ritmo normal, mas consigo. Ouvi dizer que em outros países eles dizem que o café da manhã irlandês é um curador de ressaca.
- Curar a resseca é um exagero, mas ajuda bastante. - deixei ele terminar seu café da manhã e fui arrumar as minhas coisas para irmos. Com tudo pronto fomos até a recepção e acertamos todas as pendências (a essa altura o dinheiro já estava ficando escasso, nossa próxima parada seria em uma pousada bem menos glamurosa).
 
Ao sair da pousada nos deparamos com um dia nublado, úmido e frio, não tão comum na Irlanda. O vento estava especialmente cortante, nem mesmo os animais queriam sair de suas tocas. Andamos pouco mais de uma hora, as nuvens se tornando cada vez mais carregadas e o céu cada vez mais escuro.  Tinha um outro vilarejo a frente, mais uns quarenta minutos e estaríamos lá, isso se tivéssemos a sorte de não sermos pegos pela chuva antes de chegarmos lá.
- Acha que vai demorar muito para começar a chover? - perguntei, estávamos incrivelmente sem assunto.
- Não sei, as nuvens estão ficando mais escuras e... - Brendon foi interrompido por um trovão que reverberou, acredito eu, por toda a região e que fez meu corpo tremer por inteiro. - Creio que é melhor acelerarmos, o vilarejo não está tão longe e logo começará a chover.
- É claro, vamos. -

  Andamos por mais alguns minutos, creio que uns 25 a 35 minutos, e quando estávamos perto do vilarejo senti uma gota de água cair no topo da minha cabeça, então logo se iniciou uma sequência frenética de gostas e por fim estávamos encharcados. Corremos até um comércio próximo enquanto víamos o mundo desabar lá fora. Eu repetia um mantra para mim mesma, lembrando-me que após a chuva sempre vinha a calmaria e que só era necessário ter calma e paciência. Assim que paramos Brendon me fitou e aos risos disse:
- Por Deus, sua vida é regida pelas leis do azar? - olhei-o e empinei o nariz ao dizer:
- Não era assim antes de te conhecer. -
- Digo o mesmo. - esperamos por um tempo até que a chuva enfim passasse, por sorte aos poucos ela foi diminuindo e por fim conseguimos seguir viagem, um pouco ensopados é verdade, mas conseguimos. Meu coração ainda batia um pouco descompassado pela chuva repentina, mas aos poucos tudo foi se suavizando.

  A chuva forte trouxe consigo um lindo céu azul, o sol voltou a brilhar no céu e entre as colinas no horizonte ainda se via um arco-íris. Foi então que pela primeira vez desde um bom tempo eu me lembrei das minhas irmãs, adorávamos admirar o arco-íris após as chuvas, era a calmaria depois da tempestade, era por isso que eu suportava as chuvas, era para ver o arco-íris. Gwineth é fascinada por arco-íris, ela os "tem" por toda a parte, sempre pinta aquarelas retratando as cores no céu após as chuvas. Tudo começou quando ela por acidente derrubou vários frascos de tinta na tela de uma só vez, formando um inacreditável arco-íris, meio abstrato confesso, mas Gwineth conseguiu ver um arco-íris, então ninguém fez questão de contraria-la dizendo que eram só varias manchas de tinta colorida. Acabei cometendo o erro de me perguntar como minha família estaria agora, será que me receberiam quando voltasse? Será que entenderiam os meus porquês? Mil perguntas acusadoras invadiram minha mente, me fazendo pensar pela primeira vez que aquilo poderia realmente ser um erro. Olhei para o homem ao meu lado, com os cabelos grudados na testa pela chuva e sem suportar mais as dúvidas na minha cabeça, perguntei:
- Quando saiu de casa, sentiu-se culpado por deixar todos para trás e seguir os seus sonhos? - não o olhei ao fazer a pergunta, mas sabia que ele me olhava.
- Sim... - disse com a voz baixa como alguém que revela um segredo pela primeira vez a alguém e se sente ao mesmo tempo aliviado e culpado.
- E o que fez quanto a isso? Estou a somente um dia fora de casa e já me sinto um monstro egoísta.
- A liberdade tem seu preço, isso é algo importante de se entender, as pessoas são como amarras que nos prendem sem saber. A única forma de ser livre é cortar esses nós que nos atam e às vezes isso quer dizer cortar laços.
- Mas é tão difícil e dói tanto que as vezes me pergunto se vale a pena...se estou fazendo a coisa certa. - ele me olhou com uma compreensão que mesmo tendo crescido em uma família que sempre procurou entender os motivos do outro eu nunca havia sentido aquilo em toda a minha vida.
- Ninguém nunca me disse que não iria doer, quando eu sai de Cork deixei minha mãe com lágrimas nos olhos, ela viu seu único filho ir contra tudo o que ela planejou, mas eu sabia que se ficasse lá e seguisse os caminhos que me foram designados eu não seria feliz. - e sem coragem fiz uma pergunta que eu nunca tinha feito a ninguém, nem mesmo a mim.
- E você é feliz? - e então ele parou de caminhar, olhou-me firmemente e disse:
- Em partes sim, mas ninguém é completamente nada então para mim isso já é o suficiente.
- Sabe porque sai de casa, Brendon? - acho que nem eu sabia muito bem, mas vamos lá. - Porque eu tinha medo do "suficiente", eu tenho medo do "suficiente".
- Às vezes isso é tudo o que nos resta Ann. - aos poucos foi se colocando na defensiva.
- Será? Então de que adianta sair de casa para se contentar com o suficiente em outro lugar? - não acredito que tive coragem de dizer isso, quase não reconheço a pessoa que disse tais palavras, mas sei que gosto muito dela.
- Você ainda não viveu o suficiente para entender que até acertando, se comete erros. -
- E qual foi o seu erro? - se ele respondesse essa pergunta poderia me sentir vitoriosa.
- O amor... - e foi o suficiente para perceber que dali eu não tiraria mais nada.

Uma Jornada em Busca da Liberdade por Milena Milão Onde histórias criam vida. Descubra agora