Athenry, Irlanda 1870
Após perder grande parte da minha dignidade ao cair na frente do meu companheiro de viagem, peguei minha mala que havia parado ao pé de uma árvore e seguimos para o vilarejo. Ao chegar lá nos deparamos com pessoas rindo e bebendo pela rua, música ecoava por todos os cantos e muitas lamparinas se espalhavam pelo vilarejo iluminado-o, mas o que mais chamava atenção eram as famílias envolta de uma fogueira cantando e dançando. Olhei para Brendon e vi que ela está absorto nos próprios pensamentos, então com cuidado o tirei de seus devaneios e disse:
- Pelo visto chegamos em uma noite de festa. -
- Realmente, o que infelizmente dificultará muito nossos planos de descansar para seguir viagem amanhã. - bem, eu não tinha parado para pensar por esse lado.
- Ah, tem uma pousada logo ali a frente! - disse apontando para uma espécie de chalé quatro vezes maior que o normal. Ao adentrar a pousada fomos até a recepção e fomos atendidos por um feliz senhor alto de cabelos e barba ruiva:
- Bem vindos a pousada Athenry! Eu sou Hian Sean e vocês são Sr e Sra... - foi então que li uma placa ao fundo dizendo só hospedar casais.
- Nós somos Sr e Sra Brigid. Pode nos chamar de James e Maureen. - disse Brendon surpreendendo com sua agilidade. E de onde raios ele tirou "Maureen"?
- Isso mesmo, somos os Brigid estamos vindo de Limerick - eu disse sorrindo da forma mais gentil que pude mediante ao choque de perceber que eu e Brendon ficaríamos no mesmo quarto, porque aparentemente somos o Sr e Sra Brigid!
- Venham, vocês chagaram na hora certa, só temos mais um quarto! - e então o seguimos por um longo corredor até chegarmos a uma porta de madeira, o senhor Sean abriu a porta e nos deparamos com um quarto não muito grande porém com uma cama de casal no centro, uma cômoda embaixo da janela e por fim um biombo de madeira que guardava um lavabo com uma banheira já com a água quente (pedimos para que preparassem um banho enquanto resolvíamos todas as burocracias da estádia). - Caso precisem de alguma coisa é só chamar pela campainha, o jantar já foi servido, mas se desejarem poderemos preparar algo e trazer aqui.
- Eu e minha esposa aceitamos o jantar. - disse Brendon sorrindo e fingindo costume, esposa, como aquilo soava estranho e ao mesmo tempo parecia tão real.
- Bem, então agora os deixarei a vontade, em breve servirão o jantar. - e saiu fechando a porta atrás de si, o quarto pareceu tão silencioso, mas o silêncio foi quebrado por uma crise de riso que Brendon e eu tivemos assim que olhamos um para o outro.
- Sr e Sra Brigid, de onde tirou isso? - eu disse já sem fôlego.
- Não faço ideia, Sra Maureen Brigid! - e aquele sorriso travesso voltou, não tinha me dado conta do quanto aquele sorriso é poderoso, até agora, quando tirou-me ainda mais o fôlego e ao mesmo tempo deu-me a certeza de que tudo ficaria bem, 'tudo ficaria bem'.
- Bem, e agora? O que faremos? -
- Você vai tomar o seu banho e eu vou descer ver se acho alguma coisa interessante, volto para o jantar. Meu Deus, essa frase é tão "matrimonial", melhor ir antes que troquemos as alianças. - ele está com a mão na maçaneta para sair, quando me lembrei de algo terrivelmente constrangedor porém necessário, não conseguiria abrir o espartilho sozinha.
- Sr. Liadan... - então fui interrompida por ele, que disse:
- Bem, ao nível em que chegamos, pode me chamar de Brendon. - realmente, Sr e srta já não fazia mais sentido, eu estava prestes a pedir que ele abrisse meu espartilho!
- Claro, então por favor me chame de Annelise ou Ann ou Grace, ter muitos nomes trás muitas possibilidades. - disse rindo.
- Mas então Ann, o que ia dizer? - ah claro, é agora que eu peço para ele abrir o meu espartilho.
- Brendon... - ah meu Deus Annelise! Mas não precisei terminei a frase:
- Quer que eu a ajude com o vestido? - ele disse aquilo com uma tranquilidade assustadora, mas consegui sentir bem no fundo um toque de apreensão.
- Bem, sim... - senti minha bochechas queimarem.
- Havia me esquecido de como a mulheres ficam vermelhas com facilidade - ele disse rindo, porém de um jeito gentil e não hostil - fique tranquila, imagino que realmente seja difícil realizar esta tarefa sozinha, não há problema nenhum em pedir ajuda ao seu falso marido. - nisso ele já estava as minhas costas puxando com destreza as fitas.
- E se me permite, agora que já atingi o tom carmesim mesmo, aonde foi que aprendeu a manusear um espartilho com tanta destreza? - por um segundo seus dedos pararam o trabalho intensivo.
- As mulheres que trabalham nas tavernas não tendem a ser tão dadas ao pudor então sempre que precisam de ajuda para por ou tirar um espartilho por exemplo não hesitam em pedir ajuda. - suas voz era cautelosa, como quem escolhe bem as palavras que vai usar.
- São libertinas? Ou seja lá como as chamam? - a esta altura todas as formalidades já haviam sido descartadas.
- De certa forma, sim. São mulheres que veem mais vantagens em uma vida cheia de prazeres do que em uma vida aonde se tem respeito e recato. - as tais libertinas, prostitutas, mulheres da vida, etc, tendem a ser um assunto proibido entre as jovens damas solteiras que tem que pensar que a vida é como brincar de boneca e pentear os cabelos. - terminei, está livre! Sempre me perguntei, como conseguem usar estas armas de tortura?
- Não sei, acho que nunca tive a opção de não usar então me acostumei.
- Bem, agora sim a deixarei tomar o seu banho. Se precisar de ajuda para colocar este instrumento de tortura disfarçado é só pedir e dessa vez não precisa atingir todos os tons de vermelho...ah meu Deus, você está rosa!
- Tchau Brendon! - disse empurrando-o com uma mão e com a outra segurava o espartilho no lugar.Capítulo V
Athenry, Irlanda 1870Sai do quarto ainda com a lembrança da pele branca por baixo da musselina, seu rosto vermelho refletido no espelho e seus cabelos jogados livremente sobre os ombros. O que estou fazendo? Ela é uma jovem dama pura e imaculada que atingiu o mais escuro tom de vermelho ao me pedir para ajudá-la a abrir o espartilho. Desci até aonde a festa acontecia, adentrei em um pub e pedi uma típica cerveja irlandesa. O lugar estava cheio de homens bebendo, jogando, rindo, etc, em tão pouco tempo já havia me acostumado a ter uma companhia feminina. Com a voz calma e suave, o perfume de lírios e os assuntos sempre eruditos e concisos. Agora me encontro em meio a homens sem o mínimo do recato e alguns nem sequer tem educação. Mas senti uma pontada de saudade das minhas tavernas em Dublin. Aquele era o meu espaço, meu território, eu sabia dizer qual cerveja era só pelo cheiro. E realmente ali eles serviam ótimas cervejas.
Uma hora, mais ou menos, se passou e meu estômago já estava praticamente conversando comigo exigindo uma refeição descente. Paguei por minha cerveja e voltei para a pousada, ao passar pelo saguão vi vários casais rindo e dançando, sai de casa porque achava que estava muito novo para me casar, mas lá eu tinha dezessete anos, agora tenho vinte cinco porém as minha convicções quanto ao casamento ainda não são muito favoráveis.
Cheguei no quarto, bati na porta e a resposta foi imediata:
- Entre, você chegou na hora certa! - ela estava sentada na beirada da cama, os cabelos estavam úmidos porém perfeitamente arrumados sem nem um fio fora do lugar, percebi que prefiro ele rebelando-se contra os laços e com cachos escapando do penteado. A única coisa fora do lugar era o espartilho, que ela segurava firmemente com as duas mãos para que nada fugisse do mais recatado possível. - Será...que você...poderia me ajudar? - não tinha jeito, um tom de rosa tingiu imediatamente suas faces.
- Ah, claro. - então fui até ela que já estava de costas para mim. Comecei a cruzar as fitas e aperta-las, assim que fiz à primeira parte Annelise se pronunciou dizendo:
- Pode apertar mais um pouco por favor? -
- Posso, mas se eu apertar mais um pouco você ficará sem respirar.
- Ah, já estou acostumada. Me lembro até hoje do meu primeiro baile, mamãe apertou tanto meu espartilho que cheguei ao baile quase sem cor. - uma sensação estranha percorreu o meu corpo, pensar em Annelise, que geralmente está com as bochechas rosadas, completamente sem cor era angustiante.
- Está bom? - disse ao apertar um pouco mais.
- Tem como apertar mais? - ela disse, porém sua voz já estava entrecortada e eu vi que estava prendendo a respiração. Não sei o que se passa na cabeça das mulheres, só sei que não compactuaria com aquele crime.
- Ann, não acha que já está bom? Você já está sem respirar. - então ela me olhou por sobre o ombro e poderia ser pela falta de ar mas seus olhos estavam vermelhos.
- Perdão, é que acabei de me dar conta que passei por isso minha vida inteira sem nunca questionar o motivo de passar por esse martírio.
- Não precisa passar por isso Ann, acredite, com todo o respeito que tenho por você digo que sua beleza está em ser quem você realmente é. - quem disse isso? Porque estou quase acreditando que fui eu. - mas, bem, você quem deve decidir isso.
- Por favor, tem como soltar um pouco? Não estou conseguindo respirar! - disse agora sorrindo.
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Uma Jornada em Busca da Liberdade por Milena Milão
Romance"Dizem que os melhores relacionamentos são aqueles em que encontramos o amor aonde menos esperamos" - Milena Milão Annelise é a segunda de cinco irmãs. Cresceu em um lar cheio de amor e amizade, nunca pensou que algo a motivaria a deixar o lugar em...