Capítulo X

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Aughrim, Irlanda 1870

Ao fim da noite Annelise já estava dormindo ao meu lado com a cabeça apoiada em meu ombro e sua mão ainda entrelaçada a minha. Durante todo o percurso até aqui já vi diversas facetas de Annelise, ela pode ser uma dama ingênua e ao mesmo tempo uma corajosa mulher que saiu de casa em busca de seus sonhos, ela pode ser a garota que experimenta cerveja pela primeira vez e que com meia caneca (eu sei que ela não bebeu mais do que isso) fica bebada, mas também pode ser a doce e inocente jovem que precisa ser amparada durante uma tempestade. Ela tinha muitos lados diferentes e imagino como seria descobrir cada um deles. Obviamente isso estava fora de cogitação já que depois que chegássemos em Dublin muito provavelmente nunca mais nos veríamos. Como seria quando chegássemos em Dublin? Annelise não sabia nada sobre sobreviver e viver em Dublin.
Eu a deitei na cama e a cobri, já era de manhã e o céu começava a se suavizar das pesadas nuvens de chuva que o adornaram durante a noite. Fui até a sacada ver como a cidade ficou após a tempestade, algumas árvores estavam pendendo para o lado, as vendas que ficavam na rua estavam devastadas, mas de resto até que estava tranquilo. Abri um pouco a porta da sacada e um vento frio e úmido invadiu o quarto o que fez Annelise estremecer. Teríamos que passar um tempo na pousada até que o sol retornasse ao céu, seria impossível viajar com aquele vento.
Annelise estava realmente cansada, pois dormiu por mais duas horas depois que eu já havia acordado. Quando ela enfim acordou fomos até o saguão tomar café da manhã para podermos seguir viagem. O tempo já estava melhor e o sol já estava tendo mais destaque entre as nuvens, logo poderíamos seguir viagem. Nosso próximo destino era Ballinasloe que ficava a mais ou menos duas horas de Aughrim. Após tomar café da manhã voltamos para o quarto para que Annelise pudesse arrumar suas coisas e por fim sairíamos.
O tempo realmente tinha melhorado muito, a neblina densa tinha dado lugar a uma leve brisa, fria porém leve, o sol estava cumprindo seu papel em nos aquecer e as nuvens estavam se dissipando cada vez mais. Annelise caminhava com determinação, como se sua vida dependesse disso, me perguntei o que estava motivando pois esteve "tranquila" durante toda a viagem até aqui. Por fim me rendi a curiosidade e perguntei:
- Ann, está ansiosa para chegar a Ballinasloe ou é impressão minha? -
- Não estou ansiosa para chegar a Ballinasloe, estou ansiosa para chegar a Dublin! Estamos viajando a dias e tudo bem que conheci muitas cidades e vi paisagens lindas, mas eu sempre sonhei com Dublin e ela parece estar cada dia mais distante! - por um momento ela se pareceu com uma criança irritada por não conseguir um brinquedo.
- Ann, por que resolveu ir até Dublin a pé? Poderia te alugado uma carruagem. -
- Não tive tempo para isso, tive que sair de casa sem que soubessem sem deixar nenhuma pista, e sairia bem mais caro pois eu teria que fazer paradas do mesmo jeito e ainda teria que pagar a carruagem e o cocheiro. - vê-la falando tão racionalmente me fez perceber como estes poucos dias já a estavam mudando.
- Entendi, pois bem, iremos agora para Ballinasloe, fica a mais ou menos duas horas de onde estamos e daqui a pouco poderemos fazer uma parada e seguir para Athlone que fica a seis horas de Ballinasloe.
- Seis horas? Meus Deus! Jamais irei conseguir caminhar por seis horas!
- Você já caminhou por cinco, caminhar por seis vai exigir só um pouco a mais de esforço.
- Tudo por Dublin, não é mesmo? Tudo bem caminharei as seis horas.

A caminhada até Ballinasloe foi tranquila, quando chegamos lá Annelise já estava faminta então entramos direto em um restaurante. Comemos com mais ou menos uma hora e ficamos descansando por mais uma. Até que chegou o momento de encarar as seis horas até Athlone, eu não estava com muita fé de que conseguiríamos, mas Annelise estava novamente determinada, nas primeiras duas horas andou de forma mais rápida, o que nos fez ganhar pelo menos meia hora em relação à distância normal se estivéssemos andando "calmamente". Depois disso vieram duas horas de algumas reclamações quanto ao cansaço, mas até reclamando ela conseguia ser otimista. Quatro horas se passaram e eu já não sabia mais quanto tempo ela aguentaria, começamos a andar mais devagar até que ela disse que estávamos perdendo tempo e voltou com sua determinação, realmente o homem com quem ela se casasse teria que ser igualmente determinado para conseguir acompanhá-la em tudo. Inacreditavelmente chegamos a Athlone, já cansados e esgotados, encontramos uma pousada (nunca passei por tantas pousadas em toda a minha vida) e fomos para o quarto, cada vez mais a qualidade ia caindo, dessa vez ficamos no térreo e o quarto era ainda menor que o último, porém era muito bem decorado, o que deixava o lugar um pouco mais aprazível.
Annelise como sempre foi direto para o banho enquanto eu abria todas as portas e gavetas do quarto. Tomei a liberdade de pedir o jantar enquanto ela tomava seu banho, pelo que analisei até agora, os gostos dela seguem um padrão, então não seria muito difícil pedir algo que a agradasse. Por Deus! Já estávamos íntimos ao ponto de eu saber quais os tipos de comida que ela gosta? Eu preciso chegar logo em Dublin e voltar para a minha vida antes que seja tarde demais.
Ela saiu do banho com os cabelos úmidos, quando secos rebelam-se contra as amarras, aqueles cachos dourados foram feitos especialmente para ela, rebeldes e ao mesmo tempo graciosos. Suas bochechas estavam vermelhas assim como sua boca, nunca tinha reparado em como seus lábios eram vermelhos. Ela estava levemente irritadiça, ao vê-la parar diante de um espelho e colocar alguns fios dourados no lugar, percebi que era por causa do cabelo. Fui até ela e como de costume arrumei seu espartilho, mas dessa vez tive de ser mais ousado, ela estava parada diante do espelho então aproveitei o fato de já estar atrás dela e a olhei nos olhos, nunca pensei que um reflexo pudesse ser tão poderoso. Ela me olhou com curiosidade e por fim disse:
- O que pretende fazer, Brendon?
- Como um bom amigo e companheiro de viagem, me sinto na obrigação de lhe informar que nem que passe o resto da vida tentando vai conseguir controlar esses cachos, porém há um jeito melhor de lidar com eles, deixando-os livres. - E com certa destreza puxei a fita que prendia seus cabelos e as madeixas cacheadas se soltaram adornando seus ombros e suas costas. - E então, o que achou?
- Nunca os deixei soltos, mamãe, a governanta, as babás e muitas outras pessoas sempre elogiaram meu cabelo, mas pelos penteados e por sempre mantê-lo preso. Isso me fez pensar que ele solto é desagradável, ao passo que mantê-lo preso o torna gracioso.
- Sinto em lhe informar, mas mentiram para você Srta. Calaham, a uma beleza surpreendentemente exótica na liberdade. - notei minha voz se tornando mais rouca e baixa, Annelise se virou para mim e seus olhos me acertaram em cheio. Meu Deus como aqueles lábios eram vermelhos! Uma sensação que já não sentia a muito tempo percorreu o meu corpo, a última vez que senti isso foi com Jasmine, mas era diferente, ela era voraz e feroz, não tinha medos ou receios em relação a ela, já com Annelise, eu tenho medo de cada consequência com a qual ela vai arcar se eu for em frente.
- Brendon... - então, aquela pequena palavra, meu nome, sussurrada por Annelise, seria a minha ruína. Por impulso segurei seu rosto com uma das mãos, sua pele era macia e quente, ela não fez nada para me impedir, então me aproximei, sentindo sua respiração quente e hesitante, seus olhos me acompanhavam atentos, até que se fixaram em um ponto, meus lábios. Naquele momento, por mais que quisesse, e eu não queria, jamais teria conseguido impedir o que estava por vir, Annelise era como uma força da natureza, que dominava meus sentidos e tirava completamente a razão. O encontro de nossos lábios foi quase divino, exceto por ser um ato tão profano. Seus lábios eram suaves, inexplicáveis, inexperientes e ao mesmo tempo tão sábios. Intensifiquei nosso beijo, explorando sua boca, brincando com sua língua, sentindo seu corpo colado ao meu. Suas mãos, muito rapidamente encontrando o meu pescoço, o toque dela, seria capaz de levar um homem à loucura. Pensei em outro homem tocando-a e senti meu corpo enrijecer, precisava lembrar que ela não era minha, jamais seria minha. Em um impulso, quis tomá-la para mim, para que outro homem jamais pudesse toca-lá, para que o único homem que a tivesse em seus braços, fosse eu. Aquilo não iria terminar bem. Fui salvo de cometer uma loucura quando bateram na porta, era nosso jantar. Nos afastamos, fui até a porta peguei a bandeja e a deixei na cômoda.
- Ann, eu...eu sinto muito, peço que me perdoe por isso... - era o mínimo que eu poderia fazer depois de chegar bem perto de ser uma canalha.
- Ah, está...está tudo bem. Vamos esquecer isso. - seu rosto estava vermelho, os lábios ainda mais, ela olhava para o meu peito, como se não conseguisse olhar diretamente em meus olhos. Suas palavras, tão racionais, eram contestadas pelo seu comportamento.

Uma Jornada em Busca da Liberdade por Milena Milão Onde histórias criam vida. Descubra agora