Kiltullagh, Irlanda 1870
Annelise sempre conseguia arrancar-me mais do que eu já disse a qualquer pessoa. Só que dessa vez foi longe demais, ao me perguntar sobre o meu erro ela me lembrou do meu maior arrependimento. Ao me indagar sobre trocar um "suficiente" por outro me fez perceber que talvez algo realmente faltasse. Infelizmente ela me fez lembrar de Jasmine, o meu erro.
Logo que cheguei em Dublin conheci meu sócio, abrimos diversas tavernas e em uma delas conheci Jasmine. Ela veio nos procurar pois desejava um emprego em uma das tavernas. Ela era linda, era filha de um espanhol com uma irlandesa, possuía um sotaque pesado sempre que falava o inglês. Seus olhos eram negros e enormes, os lábios sempre tingidos de vermelho e as madeixas negras adornado suas costas. Assim que começou a trabalhar na taverna começamos a nos envolver, um ano depois eu já tinha três grandes tavernas e um casamento marcado com uma espanhola que de irlandesa não tinha quase nada. Sim, Jasmine me fez ir contra meu principal objetivo: viver a vida antes de me casar. Dias antes do casamento eu estava fechando a taverna quando avisto Jasmine e meu sócio vindo em minha direção. Sempre foram amigos, por isso não estranhei o fato de estarem juntos. Mas então Jasmine se aproxima de mim com meu sócio ao seu encalço e diz que precisamos conversar. Minha primeira reação era tirá-la dali para conversarmos em um lugar mais reservado. Mas então ela põe a mão em meu ombro e vejo que seus olhos se enchem de lágrimas não vertidas. Foi ali que eu soube o que estava acontecendo, Jasmine disse que não poderíamos nos casar pois seu "coração", se é que podemos dizer que ela tenha um, pertencia a outro. Eu amava aquela mulher e ela sentia o mesmo pelo meu sócio que foi muito gentil em retribuir o sentimento. Então eu os mandei embora, desfiz ali mesmo a sociedade e nunca mais os vi, achei que me arrependeria de não tê-lo socado, mas vejo que eles estavam muito piores do que eu. Agora, sete anos depois aparece Annelise Grace, ela tem mais em comum com a grande pirata Grace O'Malley do que pensa. Ela com sua destreza impecável me tirando segredos que por vezes eram desconhecidos até por mim. Mas lhe falar sobre Jasmine era a coisa mais difícil que eu poderia fazer na vida, por isso optei por encerrar o assunto ali.
Já estávamos mais ou menos duas horas andando sem trocar uma sequer palavra. Vi que tínhamos chegado em Kiltullagh, Annelise ainda não tinha me dirigido uma sequer palavra, mas creio ter aberto uma exceção pois disse-me para pararmos e comermos. Nunca tinha reparado em como a Irlanda era rica em tavernas, só até aqui já passamos por diversas. Paramos na primeira que achamos mais descente e entramos, e Annelise ainda continuava sem expressão. Percebi que estava tão acostumado a vê-la sorrindo e corando que não ver um sorriso em seu rosto era algo muito atípico e desconcertante. Pedimos uma refeição simples típica irlandesa do cardápio, uma sopa com diversos legumes, carne e em seu molho "especial" contém cerveja preta. Me senti obrigado a perguntar o que estava havendo, mesmo tendo sido eu a encerrar aquela conversa de forma tão definitiva. Ela estava com a cabeça apoiada em uma das mãos e seu olhar era vazio, sabia que por mais que olhasse para a janela seus pensamentos estavam em outro lugar
- Annelise, eu...eu quero me desculpar por ter sido indelicado em nossa última conversa, tem coisas sobre as quais são mais difíceis de falar... - eu esperava ser completamente ignorado ou receber uma resposta hostil, mas para minha surpresa me respondeu com suavidade e compreensão, porém deixava claro que estava preocupada demais com outras coisas para dar atenção a aquilo.
- Ah, tudo bem. - e voltou a fitar o nada.
- Ann, no que está pensando? -
- Na minha família. - aquilo me pegou desprevenido, quando se trata de casa as coisas são bem mais complicadas.
- E o que tem sua família?
- Hoje é o casamento da minha irmã mais velha, Winnie, hoje ela vai se tornar a Sra. Campbell. - sua voz tinha um misto de alegria e tristeza.
- Se arrependeu de ter saído de casa?
- Eu não sei, é claro que eu gostaria de estar com a minha irmã neste dia mas ao mesmo tempo eu estou feliz por estar seguindo o meu caminho, isso me torna uma egocêntrica egoísta.
- Em partes, como eu disse ninguém é completamente nada, realmente hoje é um dia muito importante para a sua família e de certa forma sua presença seria importante, porém você se sente culpada por não estar lá o que nos dá a entender que você tem consciência disso, resumindo, você é uma egoísta arrependida.
- Você sabe que não ajudou, não é? - por sorte a comida chegou e como estávamos famintos não tivemos tempo para prolongar o assunto.Saímos da taverna e fomos surpreendidos por um céu agora completamente azul, porém um frio ainda cortante e a umidade se tornava espessa. As bochechas de Annelise já se encontram vermelhas pelo vento frio e seus cabelos estavam em sua melhor forma, libertando-se da fita que os mantinha no lugar. Annelise me fazia pensar em minha família, sempre que podia enviava cartas a minha mãe e ela sempre as respondia com muito gosto. Geralmente o papel vinha marcado por algumas lágrimas e aquilo me fazia sentir o que imagino que Annelise esteja sentindo agora, o medo de estar sendo egoísta e de estar cometendo um erro.
Caminhamos mais um pouco, o sol já começava a se esconder trás das montanhas, mas não era por isso que pararíamos nossa viagem, combinamos de chagar a Aughrim ainda hoje, seriam mais ou menos umas quatro horas de viagem até lá e quando chegássemos passaríamos a noite lá e seguiríamos para Ballinasloe.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Uma Jornada em Busca da Liberdade por Milena Milão
Romance"Dizem que os melhores relacionamentos são aqueles em que encontramos o amor aonde menos esperamos" - Milena Milão Annelise é a segunda de cinco irmãs. Cresceu em um lar cheio de amor e amizade, nunca pensou que algo a motivaria a deixar o lugar em...