Capítulo IX

0 0 0
                                    

Aughrim, Irlanda 1870

  Quando enfim chegamos em Aughrim após "eternas" quatro horas de viagem já me sentia deveras cansada, meus pés doíam assim como todo o meu corpo. Estava frio, ventando, a umidade se fazia presente e uma chuva fina começava quando adentramos a cidade. Logo fomos em busca de uma pousada e mais uma vez não tivemos outra opção a não ser ficar no mesmo quarto, dessa vez foi por conta do dinheiro. Assim que entramos vimos que o quarto era menor que o da pousada anterior, mas até que era bonitinho. Era um estilo bem rústico como uma casa de caça, os móveis eram de madeira bruta e tinha um tapete de pele de algum animal no chão. Mas o que mais me interessava era a lareira já acesa e a banheira com água quente. Desta vez foi mais fácil pedir a ajuda de Brendon, mas isso não quer dizer que tenha sido completamente fácil. Tinha um biombo que separava o lavabo do restante do quarto, como estava cada vez mais frio lá fora e aqui a cidade não era tão movimentada e o saguão não era tão bom, eu e Brendon concordamos que ele ficaria no quarto mesmo enquanto eu tomasse meu banho, porém fiz questão de deixar o biombo ainda mais impenetrável. Enquanto eu jogava algumas toalhas e lençóis por cima do biombo Brendon tentava controlar o riso, sei que parece um exagero, mas ainda sou uma jovem solteira dividindo um quarto com um jovem, devo confessar muito atraente, igualmente solteiro e sem a intenção de nos casarmos.
  Brendon ficou analisando a construção, inclusive ele é bem mais detalhista do que aparenta, e eu fui tomar o meu banho. Mergulhei na água quente e deixei ela tomar todo o meu corpo, cada parte tensa pela viagem aos poucos ficava mais relaxada. Meus cabelos estavam encharcados, porém era uma sensação maravilhosa. Agora que já estava devidamente limpa peguei a toalha e comecei a me secar. Depois disso fui me vestir, fiquei tentada a vestir o roupão de seda branca pendurado na parede, mas ao invés disso vesti minhas roupas convencional. Agora já tinha se tornado um pouco mais normal pedir ajuda ao Brendon para me ajudar com o espartilho, mas ainda sentia minha bochechas esquentar ao fazê-lo.
- Brendon... - ele estava distraído com as dobradiças da janela.
- Ah sim, claro, o espartilho! - suas mãos estavam frias, mesmo por cima da musselina era possível sentir.
- - Ela deve estar linda...
- Perdão, o que disse?
- Ah, estava pensando alto, pensei em como minha irmã deve estar linda vestida de noiva... - isso porque eu ainda nem tinha pensado na hipótese de terem adiado o casamento por conta da minha fuga.
- Vai chegar um dia em que a culpa não vai mais te corroer dessa forma, assim como a adrenalina já não será tão intensa em suas veias. -
- Foi por vê-la se casando que eu decidi que era a hora de sair de casa, percebi que por mais que ela fosse feliz aquilo não era para mim.
- O que exatamente não era para você? 
- Me prender a uma pessoa pelo resto da vida, abrir mão de tudo por ela, formar uma família e me doar completamente a meus supostos filhos, não sem antes me conhecer, sem ter vivido minha própria vida.
- E depois que se descobrir? O que vai fazer quando chegar em Dublin? - essas eram perguntas que eu nunca tinha me feito, nunca tinha pensado no depois, só no durante.
- Eu...eu não sei. - ele terminou com o espartilho e foi ver algum papel que estava encima do aparador embaixo da janela.
- Bem, vamos deixar o futuro para depois porque agora eu estou com fome e eles têm um ótimo menu aqui.
- Quais são as opções? -
- Temos linguiça, bacon, batata, mais batata e mais batata, ah e também tem cerveja. Mas acredito que depois da sua última experiência com cerveja você não esteja disposta a se arriscar. -
- Do que está rindo? -
- Como conseguiu ficar bebada com meia caneca de cerveja? Já vi homens que tiveram que beber barris para esquecer seus problemas, eles dariam graças se ficassem bebados de primeira. - e continuou a rir enquanto lia o cardápio.
- Para sua informação eu bebi mais da metade da cerveja e não fiquei "bebada", só um pouco alterada... - e já senti meu rosto ameaçar ficar vermelho.

  Pedimos o jantar que realmente estava delicioso, não bebi a cerveja, mas pelo que Brendon disse, estava ótima. A noite ficava cada vez mais fria, a lareira estava sendo muito útil, ela ficava perto da cama então era o melhor lugar para se ficar. Na outra pousada com tudo o que aconteceu Brendon acabou dormindo em uma poltrona, dessa vez seria muita maldade e egoísmo deixá-lo dormir novamente na poltrona, que no caso estaria realmente fria. Bolamos um plano para conseguirmos dividir a cama, tínhamos algumas cobertas a mais então eu iria dormir de um lado da cama com uma coberta, dividíramos a cama colocando uma coberta no meio e ele ficaria com a outra. Parecia um bom plano e estávamos cansados demais para pensar em fazer qualquer coisa inadequada. Era muito estranho estar na mesma cama que um homem que eu acabei de conhecer. Dormimos por mais ou menos umas duas horas, mas fomos acordados pelo estrondo de um trovão acompanhado pelo uivo do vento batendo na janela. O quarto possuía uma sacada e a porta era grande parte constituída por vidro, por isso o quarto inteiro se iluminou quando um raio cortou o céu. Um outro trovão fez até mesmo Brendon estremecer, o que era bastante incomum visto que ele era um homem alto e imponente. Eu sabia lidar com chuvas, até certo ponto, o que estava acontecendo lá fora era o início de uma tempestade. Tempestades sempre me deixavam muito apreensiva, sempre que uma começava era Winnie que me socorria, ela ficava ao meu lado até que passasse. Ela segurava minhas mãos e ficava comigo até que a chuva acalmasse e eu me sentisse segura para ficar sozinha de novo. Agora eu não tinha a mão de Winnie para segurar e os trovões se intensificavam lá fora. Sentei na cama, e abracei as minhas pernas enquanto enquanto repetia baixinho uma espécie de mantra "depois da chuva vem o arco-íris". Ao ver o meu estado de quase pânico Brendon sem saber muito o que dizer perguntou se tinha algo que pudesse fazer para me ajudar. Estava muito absorta e concentrada no ritmo da chuva lá fora então só consegui dizer um "não sei" foi então que ele começou a conversar comigo como se não estivesse acontecendo uma tempestade pré-apocalíptica lá fora.
- O que está achando da viagem até agora? - eu o encarei desacreditada da serenidade em sua voz, mas respondi a pergunta.
- Está sendo...hm...muito interessante. - era um pouco difícil desviar minha atenção dos estrondos dos trovões, mas consegui o suficiente para formular uma reposta.
- Certo. Como imagina que tenha sido o casamento da sua irmã? - ah Winnie...
- Ah, não sei.
- Ah por favor Ann, se esforçe um pouco mais. -
- Tudo bem, ouvi durante minha vida inteira Winnie dizer que o casamento dela seria ao ar livre, as flores seriam todas azuis e enquanto ela entrasse no casamento para ir em direção ao seu noivo tocaria Vivaldi. - pensar no sonho de Winnie se realizando me tranquilizou um pouco, mas logo veio outro trovão e voltei ao meu estado de alerta.
- Ei, calma vai ficar tudo bem, tempestades vem e passam. O que você geralmente faz para se acalmar em tempestades?
- Bem, minha irmã, Winnie, segura minha mão e fica comigo até passar, ela já chegou a passar uma noite inteira ao meu lado. - não pude deixar de sorrir ao lembrar da minha fiel companheira de tempestades. Nesse momento a chuva se intensificou batendo fortemente contra o telhado o que provocava um som muito alto dentro do quarto.
- Hm... - Brendon agora passava a mão no queixo como alguém que procurava uma solução rápida porém eficaz. Ele se levantou, foi até a cômoda pegou algumas velas e as acendeu com o fogo da lareira, as espalhou pelo quarto e por fim se voltou para o meu lado. O quarto estava iluminado o que diminuiu um pouco a sensação de total falta de controle. - Vai ficar tudo bem, está certo? Não sairei do seu lado até a tempestade passar. - seus olhos eram a confirmação das suas palavras, segurou uma das minhas mãos e ficou contando histórias que já aconteceram em suas tavernas, aos poucos fui em distraindo da tempestade e me envolvendo com as histórias de noites inteiras de bebedeira, esposas invadindo a taverna atrás dos maridos, maridos invadindo a taverna atrás dos amantes de suas esposas.
- Obrigada, Brendon, por tudo! - ele sorriu de forma modesta e continuou contando as pérolas que já tinham me envolvido por completo.

Uma Jornada em Busca da Liberdade por Milena Milão Onde histórias criam vida. Descubra agora