Devaneios

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"Em meus devaneios de ingratidão, perdia os sentidos, mas eles estão sempre ali para me guiar e me tirar do abismo"

O som pesado e ardente dos disparos chegou ecoar sobre minha pele que tremeu ao ritmo. Armados até os dentes, com coletes, coragem e uma única certeza: limpar o mercado dos infectados que ali estavam. Andamos seguindo a menina encorajada de uma força estranha. Marry andou despreocupada e com uma visão fixada a uma escada que ia levá-la até os supostos sobreviventes. Não tinha medo dos mortos que corriam desesperados até ela, pelo contrário, erguia sua arma desajustada, mas acertando quem fosse que tentasse atacar. Era surpreendente, a jovem e doce Marry agora mostrou-me outro lado.

Existiam, pelo menos, mais de dez deles. Vestiam uniformes verdes e calças cumpridas jeans, cada camisa com um crachá denunciando serem funcionários do mercador. Caroline, Luiza e Clarice ficaram dentro do depósito, enquanto adentramos o estabelecimento precário. Confesso que o medo me dominou, todavia sentir medo era um sinal bom. Sinal de que ainda estou firme e lucido, diferente da garota que andou sobre o sangue do piso sem preocupar-se com as consequências. Agora João e Torres davam cobertura, seguindo Marry. Bruno e Léo estavam ao meu lado.

O chicotear das balas cravando sobre a cabeça deles, me fez sentir uma repulsa enorme. Ver tanto sangue no chão escorrer sem rumo me deixou abismado com o que o mundo acabara de virar. Tinha certeza que a partir de agora era: viver ou morrer. Deveríamos estourar miolos para ter algum tempo sobre este apocalipse destrutivo.

O odor da putrefação dos infectados sentiu-se de longe, devido há horas de carne morta em movimento. Olhei para o lado e veio uma mulher em minha direção. Gorda de cabelos enrolados, sua pele pálida como neve, olhos esbugalhados em um tom negro solitário, suas veias saltadas devido a infecção se via de longe. Ergui minha arma em sua direção, suado de medo, meus olhos pesados de pavor imploraram para aquilo ser uma miragem. Infelizmente não era, atirei. A bala adentrou na altura de seu nariz e ela caiu inerte ao chão espalhando seu sangue sobre potes de vegetais em conserva sobre uma prateleira. Uma vontade gigantesca de sumir me dominou, ver aquele crachá no peito da mulher me revoltou. O nome da senhora que aparentou ter os seus cinquenta anos era Selma. Pelo visto uma mãe de família, que ainda trabalhava para dar o melhor as pessoas que amava. Agora está sobre um piso de porcelanato, com seus miolos por todos os lados. Não ter mais o direito de um funeral, de ter que ser jogada em uma vala com mais corpos, isso não era mais o nosso Planeta. Se foi isso que eles queriam, conseguiram. Estão dominando nosso mundo com o que mais dói em nós, ver nossos semelhantes morrerem como animais. Estão forçando nós mesmo matarmos uns à os outros. Que raça de seres sem alma são eles? Por que...

— Cuidado irmão. – Léo atirou e acertou um infectado que caiu sobre um amontoado de salgadinhos. Em meus devaneios de ingratidão perdia os sentidos, mas eles estão sempre ali para me guiar e me tirar do abismo. Segurei o braço de meu irmão que tremeu com o que fez. Mesmo sendo forte e decidido, a ideia de socar uma bala na cabeça de um alguém era pavoroso para qualquer um de nós.

— Acho que acabou! – Berrou Torres, - Léo busque sua irmã e as meninas, vamos seguir a Marry, rápido e tome cuidado.

— Sim Senhor. – Respondeu. Bruno seguiu Torres e os outros, fiquei esperando as garotas. Reparei nos corpos por todos os lados. Como eles se infectaram se as entradas estão todas trancadas por portas de metais e revestidas com uma camada de vidros? Será que algum deles estava lá fora na hora das coisas caírem e soltarem a nuvem de sangue? Se soubessem do domínio dos Zoens não estariam mortos. Agora fortifiquei minha certeza de que tivemos sorte em encontrar pessoas que sabiam sobre o que poderia acontecer. Estamos sendo salvos a cada segundo e ainda não conseguimos entender, por que nós? Será que outras pessoas que vamos conhecer são merecedoras desse privilegio? Maycon não soube aproveitar a chance que estava com ele, será que poderíamos confiar mesmo em novos rostos? Todo esse caos desacelera minha razão, já não consigo confiar nem mesmo em meus atos.

Livro I - Nuvens de SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora