Capítulo Dezenove

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Lucia tinha sonhado com aquele momento várias vezes. Quando pequena, imaginava-se escapulindo do quarto durante a noite para visitar o irmão. Ela se perguntava se seus quartos eram iguais, se os livros na prateleira dele eram mais interessantes que os dela. Se ele tinha desenhos que não a havia mostrado.

Ainda assim, parada em frente a sua porta, seu corpo mais uma vez congelou. Não, ao invés de enfiar a chave na fechadura ela seguiu reto, para o fim do corredor. Escancarou a porta do banheiro, ajoelhou-se em frente a privada e vomitou.

— Hm.. Você está bem? — Damian perguntou. Não porque não sabia, claramente ela estava péssima, mas não aguentou o silêncio opressor dos ladrilhos. — Foram os Milkshakes, certeza.

— É... Deve ser isso. — Ela ergueu a cabeça do assento da privada e tentou sorrir levemente, mas seu nariz escorria, a garganta arranhava e ela não se sentia nada leve. Deu descarga, caminhou até a pia e começou a lavar o rosto.

Ela observou o próprio reflexo pálido e magro no espelho. Por mais incrível que soasse, ela parecia ainda mais pálida e magra. Ainda mais insone e insana. Damian a observava da porta, com os braços cruzados.

— Talvez devêssemos dormir um pouco. Já tivemos aventuras o suficiente para uma noite.

Por um longo momento, a garota não respondeu, os olhos arregalados, vidrados no espelho. Ela parecia não se ver. Damian constatou que ela via Luca no reflexo.

— Como ele é? Luca, eu digo. — O menino usou um tom leve, gentil, que despertou Lucia do transe. Ela o olhou.

— Ele tem olhos escuros. — Sorriu um pouco. — E brilhantes. Como se sempre estivesse pensando em algo revolucionário.

Ela finalmente se afastou da pia, caminhando de ponta calcanhar, lentamente, até o meio do lugar. Então, parou, ficando na ponta dos pés e levantando os braços.

— Ele tem pernas longas. E sempre disse que era um pouquinho mais alto que eu, mesmo eu dizendo que o cabelo espetado lhe dava vantagem.

— Po, cabelo não conta.

— Era o que eu dizia! — Ela sorriu. — E a voz dele... — Lucia se calou

Indo até uma cortina plástica e a puxando, a menina revelou uma banheira de metal velha e enferrujada. A banheira, porém, era diferente de todas as que Damian já tinha visto na vida. Ela era quadrada, grosseira, com enormes placas laterais e correntes, feitas para prender quem quer que seja dentro dela. Numa ponta, um termostato quebrado, o pino eternamente preso em 150 graus. Tinha lido sobre isso, muitos anos antes, num livro sobre medicina antiga. Hidroterapia.

Era um método arcaico de tratamento psiquiátrico. Se consistia em colocar o paciente em água quente, o ferver vivo, como uma lagosta. Como se tentassem evaporar a enfermidade.

Dentro da banheira, um rádio de pilha estava caído. Ele era bem antigo, tanto que mal aceitava cds, apenas fitas. Lucia, devagar, entrou na banheira. Quando ela ergueu o longo vestido até quase a cintura, Damian pôde ver suas coxas. Acima dos joelhos ralados pela queda de mais cedo, havia cicatrizes longas, marcas vermelhas, pele que não parecia se encaixar direito, como se duas peças opostas de um quebra cabeça tivessem sido forçadas juntas. Foi apenas um instante antes que a menina voltasse a abaixar as roupas, mas a imagem queimou no cérebro dele.

A jovem, sentada no metal frio, estendeu as pernas. Ela era maior que a banheira agora, então seus pés tinham que ficar pendurados na borda. Olhando para o radio, ela o chacoalhou próximo ao ouvido, e, após checar as pilhas, sorriu.

— A voz dele era gentil — Ela continuou — E refrescante. E toda noite, pela tubulação, ele cantava isso.

Então, pressionando um botão, uma música começou a ecoar pelos ladrilhos. O som era chiado, saindo com dificuldade, mas a canção era inegavelmente linda. Os acordes gentis do violão, as batidas ritmadas do tambor, e, por fim, uma voz fina cantando.

"Haverá um Soldado, que carrega uma poderosa espada. Ele destruirá sua cidade..."

Lucia, em silêncio, formava as palavras nos lábios. Damian estava hipnotizado, observando-a enquanto ela distraidamente traçava o formato dos ladrilhos da parede com a ponta dos dedos.

"Haverá uma Poeta, cujas armas são as palavras. Ela te destruirá com sua língua..."

Lentamente, o menino se aproximou, e, abaixando-se ao lado da banheira, olhou a garota mais de perto. Ele notou que os olhos dela estavam mais brilhantes, marejados, e que ela manteve os lábios firmemente fechados na última parte da música.

"Haverá um Rei, cuja testa estará coberta por espinhos. Ele destruirá...."

A voz melodiosa parou, deixando para trás apenas ruídos e ecos.

Lucia não olhou para ele. Apenas encarou os ladrilhos com mais intensidade, como se o mundo dependesse daquilo.

—...O que fizeram com você? — A voz do garoto saiu estranha da garganta. Ela não respondeu. Mal respirou. Então ele continuou. — O que você está sentindo agora?

Lucia virou a cabeça devagar.

— Eu não sei. — Sussurrou.

E os dois se encararam por alguns segundos. Damian não sabia o que dizer, mas, honestamente, não importava o que ele fizesse, nada seria adequado ou correto. Então ele apenas a olhou. Teve medo dela se sentir dissecada, mas não queria desviar os olhos pois sabia que ela interpretaria aquilo como piedade, e nada seria pior.

A jovem colocou o rádio no chão da banheira, levantou-se e saiu. Ela e Damian encararam o aparelho por mais um segundo, em pé, quietos. Então, Lucia abriu a torneira da banheira. Água começou a escorrer, fumegante, e logo seu nível ultrapassou o do rádio, o afundando.

— Essa era a nossa música favorita. Sabe por quê? — Lucia sussurrou, o som suave de sua voz, junto com o som da água, provocaram um calafrio no corpo do menino. — Porque era a única que nos deixavam ouvir.

A menina, então, fechou a torneira. A água parou de jorrar.

Os dois saíram lado a lado do banheiro.

Enquanto andavam, lentamente, até a porta de Luca, Lucia segurou a mão de Damian. Entre suas palmas, a chave.

Ele a pegou, em uma pergunta silenciosa. Lucia acedeu.

Quando Damian abriu a porta do quarto de Luca, ambos prenderam a respiração.

Mas não tinha nada.

Não tinham móveis, não tinham livros, não tinham desenhos ou tubulação. 

Não tinha quarto.

 Apenas uma parede de tijolos. 

A Filha Do CoringaOnde histórias criam vida. Descubra agora