Capítulo Dez

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A caixa era apertada demais para os dois. Damian, com as pernas abertas, cercava a pequena Lucia, que, constrangida, não o olhava nos olhos. Apesar de estar escuro, alguns feixes de luz passavam por frestas da madeira, e um deles pousava diretamente sobre o rosto dela.

Ela tinha sardas, ele notou pela primeira vez, apenas sobre a ponte do nariz e maçãs do rosto; eram minúsculas, quase como partículas de poeira, mas estavam lá. Damian engoliu em seco e desviou o olhar também. Não era hora de pensar besteiras.

— Por que? — Ela perguntou sem som. Sua expressão meio chocada, meio brava.

Talvez porque aquele plano foi uma merda? Porque a Pomeline te passou a perna legal. Porque o Batman me confiou uma missão de te manter protegida!

Ele simplesmente deu de ombros. Ela suspirou, derrotada. Sabia que não tinha mais nada a ser feito.

Muito tempo se passou naquele caminhão, mas dentro da caixa era como se tivesse um universo particular, com uma linha temporal própria. Cada minuto parecia levar uma eternidade, principalmente quando se tentava tão avidamente não notar a garota contigo.

Mas Damian notou assim mesmo. Notou como o corpo dela era magro, frágil, devido a comida ser constantemente jogada ao chão. Notou como os joelhos dela ficavam juntos, entortando suas pernas para dentro. Notou que seu cabelo pálido era diferente do dourado de Harley Quinzel. Era claro e sem vida e sem graça. Mas ele não se importou com isso. Na verdade, ele gostou do tom do cabelo. Gostou das sardas, dos olhos, dos dentes levemente tortos... Era algo natural, orgânico. O fazia lembrar das noites chuvosas que passava ao lado da mãe, ao som do piano. A pele dela remetia ao marfim, os olhos ao ébano.

Damian se viu adormecido, engolido em um sonho com notas gentis em uma noite escura. E os sons das gotas de chuva se misturavam com os mis e os lás, fazendo seu corpo arrepiar.

Lucia, por sua vez, não pôde deixar de notar Damian também. Ele era alto, as pernas longas, olheiras profundas. Ele cheirava a café e aveia. E, quando o garoto adormeceu, sua cabeça pendeu de forma estranha e desconfortável para frente. Ela sabia que quando acordasse sentiria muita dor, então ergueu os braços na direção dele.

Com as pontas dos dedos, da forma mais delicada que pôde, tocou em seu rosto. O garoto abriu os olhos no mesmo segundo, alarmado, agarrando a mão dela bruscamente. Sua respiração estava acelerada, os olhos atentos iam da mão ao rosto dela várias vezes. Lucia, que tinha se encolhido com o susto, segurou as próprias mãos contra o peito.

— Desculpe. — Ela sussurrou — É só que... Seu pescoço.

Damian aprumou a postura e virou bruscamente a cabeça, estralando a coluna com um estalido seco que fez o estômago da jovem se revirar. Ele estava sério, as sobrancelhas grossas muito retas, como sempre, mas, dessa vez, parecia ter algo diferente em seu olhar. Quase que uma repulsa. Lucia se encolheu ainda mais.

O silêncio dele era pesado, mais que o escuro, e a jovem, para evitar cruzar olhares, mergulhou o rosto em um dos lados da caixa. Foi só então que ela ouviu. Os sussurros. As vozes.

Uma fina e estridente, outra aveludada e gentil, a última grossa e brusca. Os sons, murmúrios, choros, ganidos. Vieram devagar no início, uma onda cobrindo seus pés, mas, tampouco chegaram e aumentaram mais e mais. Em poucos minutos Lucia se viu submersa num oceano vermelho de vozes gritantes, onde todos os seus movimentos eram mais lentos, onde seus pulmões ardiam, os olhos doíam. Onde suas próprias súplicas não podiam ser ouvidas.

Não havia Deuses naquele mar.

Não havia ordem. Não havia salvação. Uma reza enterrada na garganta nunca seria ouvida.

— Lucia Quinzel?

Então uma voz diferente a chamou.

No meio de "Pudinzinhos" e risadas descontroladas, no meio de cusparadas e barulho de balas. Algum lugar entre a carne dilacerada e os choros por misericórdia.

— Quinzel? Você está me ouvindo?

Ela voltou a abrir os olhos. Só então notou que o oceano havia se entornado nela, vazado por seus olhos e nariz. Limpou o rosto com força, um tanto envergonhada. As palmas das mãos doíam, talvez de tanto apertar os punhos.

— Quinzel. —Damian falou mais uma vez.

Ela o olhou.

— Consegue me ouvir? — A jovem acedeu devagar — Bom.

Damian se ajeitou na caixa, o que foi difícil, e se pôs de joelhos. Depois, espiou tampa afora.

—O caminhão está parado. Acho que chegamos.

A Filha Do CoringaOnde histórias criam vida. Descubra agora