Terra de gigantes

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Mais um dia na nossa comunidade, mais um dia cada um no seu lugar, fazendo aquilo que era devido. Guardiões zelando pela nossa segurança e proteção, operários cuidando dos seus afazeres, enquanto nossa grande líder, mãe, nossa rainha, pensando e fazendo o nosso amanhã. O dia estava limpo, claro e com o sol sobre nós. Depois da chuva da noite passada, o sol estava sendo muito bem vindo. A parede leste havia caído devido ao temporal e muitos de nós estavam ocupados, refazendo o paredão para nos protegermos dos perigos de fora. E eles eram muitos. Predadores vorazes espreitavam do outro lado do muro, só aguardando um vacilo, uma falha de algum de nós, para se baquetearem com nossa carne. Além deles, também haviam os inimigos, que como os predadores, esperavam nossos erros.

De repente um tremor fez a poça de água ondular, e o guarda ficou apreensivo em seu posto. Uma irmã que passou por mim e deu seu cumprimento, parou apreensiva. Era nítido o medo em seu rosto. E aos que estavam em volta também.

Outro tremor.

Desta vez todos pararam. A construção do muro foi interrompida por um instante tenso e assustador.

Outro tremor.

Então todos correram. A cacofonia de gritos ensurdeceu tudo à minha volta, e tentar se entender já não era mais possível, porque mais ninguém se entendia. Os guardas saíram de seus postos e se reuniram no meio do pátio central prontos para o embate.

Gritos e gargalhadas eram ouvidos ao longe, gritos e gargalhadas guturais. Balidos e estalos, eram acompanhados de ululados monstruosos reverberam além muro, trazendo mais caos e temor a todos dentro da fortaleza. Logo em seguida uma viga colossal atravessa o teto de nossa colônia, jogando escombros para todos os lados, levantando uma nuvem gigantesca que cobre tudo ao nosso redor. Minhas irmãs entram em desespero, enquanto os soldados tentam atacar as cegas o nosso inimigo. De repente um olho maior do que tudo que um dia se possa imaginar ver, aparece do outro lado do rombo, sobre nossas cabeças. As risadas seguem, enquanto a viga monstra recua por onde havia entrado. Do outro lado dela uma mão que seria capaz de cobrir todo o nosso teto, a segura, como quem segura uma agulha. Olho ao redor e vejo vários corpos mutilados, e o terror estampado no rosto de cada uma das minhas irmãs desesperadas. 

Recompostos, procuramos fuga enquanto os guardas refazem a formação, se preparando para seguir o combate contra o nosso nababesco inimigo. De repente algo maior do que a viga, atravessa o que restava do nosso teto, trazendo mais mortes e corpos estraçalhados na sua trilha. Caio novamente e quando me levanto, avisto diante de mim, uma cabeça, uma cabeça arrancada, acompanhada da parte do seu tronco e os membros superiores. Sangue e morte se espalham a cada palmo de chão sob meus pés.

Quando a nuvem de detritos baixou, era impossível ver quem nos atacou, ao menos parte dele, parte de seu pé. Apenas o pé se deixava à mostra.

Eram aqueles que outras tantas outras vezes nos atacaram sem motivo algum, mas que para alguns de nós, eram mesmo assim chamados de deuses, ou para mim, demônios.

Quando não estavam sozinhos, eles vinham até nós acompanhados de suas crias enormes e disformes, com olhos e orelhas grandes, com bocas semi banguelas, armadas com poucos e arredondados, diminutos, dentes. Crianças insaciáveis, que nos torturavam, atiçando fogo com enormes círculos de vidro que focalizavam os raios do sol sobre nossos corpos diminutos, nos infligindo dores excruciantes, mas que apenas provocavam neles, gargalhadas neles. Outras vezes, vinham com ferramentas e sequestravam outras de nós e nos prendiam em cativeiros de vidro, onde podiam de forma sádica acompanhar nosso dia a dia, que parecia ser deveras divertido para eles. 

Em desespero e percebendo que seria em vão nossa luta, os soldados terminam por debandar para poder salvarem suas vidas. As que ficam para trás, procuram o mesmo caminho, mas rapidamente são capturadas por mãos gigantescas, que como pinças gordas feitas de carne, nos pegavam e colocavam em torres de metal colorido, para logo em seguida, fecharem com tampas igualmente enormes.

Eles sorriam, sorriam e sorriam.

Cansada, eu me aproximo de uma das minhas muitas irmãs que em agonia clamava por ajuda. Quando chego para ajudá-la, percebo que metade de seu corpo estava a faltar, e suas entranhas esparramadas pelo chão de terra batida. Olho para os lados e a visão não é muito melhor. Partes de corpos, membros arrancados, cabeças, e nossos bebês esmagados e jogados por todos os lados, retirados de seus berçários, e jogados ao Léu. Me desespero mas não abandono a minha irmã sofrida e no fim de sua vida. Encosto a minha cabeça na dela e deixo que nossas antenas se cruzem, e se afagem. Ela está com medo, posso sentir o cheiro de medo através das minhas antenas. Converso com ela através de nossos olhares multifacetados, tentando tranquilizá-la e dizer que não vou abandoná-la. E assim faço.

Logo em seguida o golpe final vem. Uma neblina esfumaçada, esverdeada e fosca invade o que restou de nosso lar, inundando nossos pulmões e gargantas nos sufocando e queimando nosso exoesqueleto, queimando como fogo, nos fazendo contorcer de dor.

Tombo ao lado de minha irmã, acompanhando ela e cumprindo a minha promessa, ao mesmo tempo em que faço outra em silêncio, apenas para mim.

Há de chegar o dia em que os deuses, os humanos, cairão e o nosso direito sobre nosso reino será retomado. Há de chegar o dia em que todas as maldades serão pagas e eles terão o castigo que merecem, e nós formigas teremos o que é seu de direito, o que merecemos, o mundo será nosso,  apenas para nós. A “terra de gigantes” um dia terá fim.

Ampolas De SustosOnde histórias criam vida. Descubra agora