Beijo sabor de fel

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E cá estamos nós. Mais uma noite. Mais um dia. Cá estamos nós.
Diante de mim ele fica a me encarar com seu corpo translúcido e seus olhos vermelhos. Me atentando, com o seu beijo que reluto a cada visita, em tomá-lo. Mas como um fiel bailarino, eu sempre me entrego e acabo dançando com ele. A cada beijo nele, eu posso sentir descer pela minha garganta, me entorpecendo e me fortalecendo com seu gosto doce de fel e amargo como o amor. Quando tenho ele dentro de mim me sinto mais forte, mais corajoso, mais desenvolto, voluptuoso.
Sem mover seus lábios, sua boca, ele me enfeitiça com sua voz em minha mente. Saimos dali juntos, abraçados e pegamos o meu carro. Senta ao meu lado cada vez que seguro o volante. Seus olhos vermelhos, seu corpo nefasto e sua voz encantadora me seduzem e me faz, fazer o que ele quer. Atravessamos avenidas, estradas, cidades, Países o mundo. No caminho, não raramente, eu faço oferendas ao seu tributo, a ele, com corpos inocentes que muitas vezes não tem tempo de perceber o que os atingiu. Quando acordam, estão ou no céu ou no inferno, eu não ligo, só ligo para ele.
As vezes o seu encanto começa a me deixar, me abandonar, mas como uma criança carente pelo peito da mãe, eu recorro a seu beijo e sorvo o seu gole, deixando mais uma vez que seu corpo translúcido me adentre, boca e goela adentro. Hoje, hoje mais uma vez estamos aqui, nos encarando e pensando para onde iremos, quem escolheremos para ser nossas oferendas. Por ele eu já perdi minha familia, minha mulher, meus filhos, meu emprego, minha vida, apenas em razão a minha veneração por ele. E a cada beijo, cada gole, mais e mais eu me encanto. Já procurei ajuda, mas em todas as fugas ele vinha me buscar e com os seus olhos vermelhos, me encantar e trazer de volta.
Cá estamos nós, mais uma vez, quem sabe uma última vez. Eu o encaro e ele me seduz.
Não resisto, estendo o braço e o pego em minha mão. Fico olhando, olhando e olhando até que não resisto, tiro seu quepe e lhe dou um beijo, puro, demorado e sedento. As vezes derramo ele num copo e esvazio a sua essência, mas ele simplesmente pula para outro e fiel como eu sou, também dou cabo demais este novo invólucro.
De repente o mundo gira, gira e gira. Olho para o lado ele esta sorrindo, sorrindo e sorrindo. Não esta mais no seu corpo translúcido, nao esta mais dentro da garrafa, está do meu lado. Seus olhos vermelhos, seus cabelos molhado de piche, corpo nefasto, crestado, queimado. Ele sorri e me beija. Me sinto aliviado, e fecho os olhos para aproveitar o momento e não esquecê-lo, enquanto o mundo ao meu redor gira, gira e gira, enquanto ainda seguro o volante. Quando abro os olhos, eu não o vejo mais, mas apenas a garrafa vazia, o seu corpo, o seu avatar translúcido ao meu lado. O mundo gira, gira e gira. Sorrio e aguardo o momento em que estaremos juntos novamente, desta vez para sempre, para todo o sempre.

Ampolas De SustosOnde histórias criam vida. Descubra agora