A lenha crepitava na lareira.
O calor gostoso afastava o frio doído que parecia grudar em meu corpo. Para ajudar, cada gole na taça de vinho, me deixava mais aconchegado e feliz por estar aqui. Fazia anos que planejava aquela viagem. E depois da morte do meu melhor amigo, o meu velho sabujo, eu resolvi realizá-la. Perdido em pensamentos para o capítulo da peça, que estava escrevendo para um amigo bailarino, eu não notei de imediato algo que chamou a minha atenção. Então, de repente ouvi batidas suaves na porta, que me fizeram olhar em direção a ela.
Fiquei esperando quieto, para ver se elas se repetiam e confirmavam que alguém ali estava. Nada.
Peguei a taça, dei mais um gole. O vinho desceu suave. Levei a minha mão para o lado, enfiei os dedos na travessa de pão torrado e temperado, e peguei um punhado. Comi satisfeito.
Então, com um pouco mais de força e coragem elas voltaram.
"TOC, TOC"
Levantei e fui ao seu encontro. Olhei pelo olho mágico, mas não havia ninguém. Estranhei. Fui até a Janela da cabana e também não vi nada do lado de fora,além da lua escura e vazia no céu . Abanei a cabeça.
Provavelmente era a lenha rachando no fogo, e o som e os pensamentos me confundiram. E outra, quem estaria ali, no meio do nada e numa noite de nevasca, batendo na porta de uma cabana isolada 30km do vizinho mais próximo...?
Voltei para o tapete e me sentei. Peguei a taça e a enchi novamente. Safra de 1983.
"Toc,toc"
Parei onde estava, olhando a porta.
Dessa vez não era a lenha. Era claro demais o som.
levantei mais uma vez, repetindo o processo.
Olhei no olho mágico e lá estava.
Uma criança.
(?)
Fiquei olhando por uns 30 segundos que pareciam 30 minutos.
Levei a mão as chaves e as chaves.
Era franzina.
Era estranha.
Aquilo era estranho.
Ela estava com poucas roupas, pouquíssimas e simples roupas.
Levei a mão até ela, preocupado por estar ali naquela hora da noite e debaixo daquela neve toda. Toquei em seu ombro, já a convidando para entrar, se aquecer e comer algo depois iria tentar descobrir como ela havia parado ali. Mas então algo me fez recuar.
Levei um choque. Um choque estatístico que levantou os cabelos do meu braço e adormeceu a ponta dos meus dedos, me fazendo puxar a mão para trás. Junto levantou um cheiro que lembrava solda quente, pólvora recém queimada... levemente de enxofre. O cheiro invadiu meu nariz e meu corpo tremeu.
Ela estava de olhos fechados e braços caídos ao lado do corpo.
Ela não tremia, e não parecia sentir nem um pouco de frio. Ela não tinha nem, ao menos, neve sobre ela, nem sobre seus cabelos longos e negros como asfalto, ou sobre suas roupas puídas de verão.
Fiquei parado olhando para ela, enquanto o seu rosto mirava o nada em direção ao chão branco e gelado.
- O senhor tem leite?
Ela disse com uma voz infantil demais, como se tivesse 3 anos de idade.
Pareceu que o ar parou à minha volta.
Estranhando aquilo, e a pergunta, abanei a cabeça negativamente, sem reação nem para balbuciar algo.
Então ela sorriu baixinho. Gutural.
- O senhor tem pão?
Balancei a cabeça num sim. Eu só consegui reagir assim, sem falar uma única palavra.
Ela levantou o rosto, deixando a mostra um sorriso débil e forçado em seu rosto pálido, como papel rabiscado.
Me virei sentindo os cabelos da minha nuca arrepiarem, enquanto a deixava na soleira da porta, sem coragem e vontade de a convidar novamente para entrar, enquanto ia até o tapete, pegar a travessa de pão temperado para dar para ela.
- E ossos, o senhor tem?
Parei no meio do caminho. Me virei
- E cinzas?
Dei um passo na direção da porta, enquanto acelerava o passo. Na soleira, ela me encarava de olhos fechados e sorriso disfarçado.
- O que você quer? Quem é você?
Perguntei finalmente, conseguindo falar algo de forma cortada, gaguejando.
- E sangue, o senhor tem?
Minha espinha gelou.
Ela sorriu de forma sibilante, enquanto eu dava um passo para trás.
- Vá embora - Disse com a voz embargada.
- E carne, o senhor tem?
Então ela abriu os olhos.
Eram negros, negros como a noite sem estrelas sobre mim.
Corri em sua direção e com um movimento rápido, puxei a porta e a fechei com força, batendo na cara dela. A tranquei. Me afastei assustado, tropeçando nos próprios pés.
Lá fora o sorriso aumentou para uma gargalhada fina, depois rouca,e por último gutural, ecoando noite adentro.
Quando parou, fui até a janela e olhei. Ela havia sumido. Não havia marcas na neve, uma única pegada, nada. Olhei para o céu e a lua já não estava lá.
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Ampolas De Sustos
Short StoryPequenas historias para prender seu medo e tornar suas insonias mais altivas. Contos de sustos, medo e terror. Arrepiem-se a vontade.