R$6,66

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A noite estava quente e abafada, sem vento, nada, nem as árvores na avenida balançavam. Joguei o cigarro fora e fechei as janelas. Ligue o ar condicionado do carro e fiquei esperando o sinal chamar.
Fiquei pensando se depois da ultima corrida eu poderia chamar a Raquel no wats e marcar da gente tomar um gelo e depois ir lá pra casa. Fazia tempo que a gente não se via, e hoje era um dia bom, quente mas bom.
Peguei o celular e chamei ela.
"Oi preta"

...
Nada. Nem recebeu a mensagem.
Saco
Então o aplicativo chamou.
Olhei e era uma corrida.
Corri o dedo na tela e aceitei. Era a última e era de um valor bom. Ligue o carro, engatei a ré, girei o volante pra esquerda, manobrei e sai bem sossegado. 3minutos e já estaria no destino.
Pista livre, sinal verde. Nada pra me atrasar. Amém.
Temporada de praia era uma benção para quem era motorista na cidade. Tudo vazio.
Cheguei no local e lá estava ele, uma senhorinha com uma criança chorando e uma bolsa maior que os dois. Peguei e levei rapidinho até onde eles queriam ir.
R$10,59.
Facinho no bolso.
Engatei a ré, girei o volante e sai.
Um vento gelado soprou pela janela que eu tinha aberto para a senhora e a criança.
Agradeci.
Naquele calorão, um vento caia muito bem
Celular vibrou.
"Oi!!!😍😍"
Esfreguei as mãos e sorri.
"Eae preta. Qualé a boa pra hoje? Partiu?
"Sim..😏😏"
"Gool...kkk"
Então passei por um vulto de mão levantada, como se pedisse carona. Passei rápido e de olho no celular, não prestei atenção.
Olhei pelo retrovisor e era um senhor. Todo arrumado.
Pensei, pensei...
Parei.
Dei ré.
Seu José? Pensei pra mim. olhei melhor e não era.
Ele estava olhando para o nada, como se não tivesse me visto.
Buzinei.
Nada.
Buzinei.
Olhou. Sorriu.
- Eae chefe, vamos pra onde?
- Muito obrigado. Ninguém parava, já estava com medo de me atrasar. Os táxis não respeitam as pessoas mais velhas.
"Táxi??"
Quase ri. Me segurei. Uma corrida por fora do aplicativo. Dava pra tirar pra ceva.
- Pra onde, chefe?
Ele ficou pensando. Então finalmente falou.
Luvison.
"Eita porra, esse tem grana. Puteiro caro"
Dentes tortos a mostra novamente. Cheiro de podre invadiu o carri ardeu o nariz.
Pensei que fosse o senhorzinho, mas quando ele falou antes, eu não senti nenhum cheiro. Então abanei a cabeça.
- Na minha idade, não tem mais preocupação com o amanhã, pois nunca se sabe se ele vai vir. Então, temos que viver, nem que seja uma última vez. E se for com a cara enfiada no meio das pernas de uma bela mulher, que assim seja.
Sorriu.
- Tá certo chefe, tá certo.
Olhei pelo retrovisor e ele estava com o olhar um pouco perdido, como se estranhasse as coisas ao seu redor. Olhou para baixo, para o interior do carro e vi ele tirar um pedaço de papel de pão do bolso. Abriu e leu um pouco, depois seu semblante murchou. Ficou assim por um tempo. Depois suspirou fundo e sorriu.
Uma lufada e vento trouxe de novo o cheiro de podre, misturado com um cheiro estranho, de remédio... De... Hospital.
Olhei mais a frente e vi o sinal fechado, e logo mais a frente o neon da placa.
" Vison "
O letreiro berrava com seu brilhante rosa pink, alternando para o verde limão e depois azul céu, e por fim voltando pro rosa pink.
- Quase, quase chefe, depois do sinal e ja chegamos.
Nada. Ele ficou quieto, apenas olhando pela janela.
Chegamos.
Lá fora um tumulto, gente rindo, gente com cara de assustada. Os seguranças estavam lá fora, ao lado de uma ambulância da SAMU.
"Puta que pariu, deu merda".
- Fica um pouquinho aqui chefe, deu ruim ai na rua. Espera ai, vou dar uma olhada.
Abri a porta, sai e tranquei as portas. Vai que... Né?
- eae negrão - o segurança se virou e se aproximou. Era o Luiz. Amigo meu.
- Fala negroo.
- Qual foi?
- Bah, um cliente.
- Briga?
- Não, faleceu.
- Ah vah?
Quase sorri.
- Tô dizendo. Ele sempre vinha aqui. Vip. Grana que sobrava. Acharam um bilhete dobrado no bolso do paletó dele. Alguém leu, não sei o que dizia.

- Tô dizendo, esses tiozinho acham que são guri... Isso é que dá. Apontei por cima do ombro. Ele olhou e não disse nada.
- Ele tava com um câncer, terminal, mas não quis se tratar, dizia que queria viver.
- E viveu, bem. Queria morrer assim.
Sorrimos.
De repente saiu uma maca pela porta corta fogo, de emergência. Uma dupla de paramédicos empurrava ela. Em cima, o corpo coberto pelo lençol. Me aproximei e cumprimentei e fiz sinal de positivo.
Então um vento norte soprou e levantou um pouco o pano branco, deixando a mostra o topo da cabeça do corpo, e a mão direita dele, deixando visível um pequeno pedaço dobrado de papel entre os seus dedos.
Apertei os olhos e estranhei. Chegue mais perto e o paramédicos ergueu a mão, impedindo que eu chegasse mas perto. Ele aliviou e abriu espaço.
- Só deixa eu ver, acho que é meu vizinho.
Será que agora era o seu José?
Me aproximei e levantei um pouco mais a ponta do lençol.
Dei um pulo, e um passo para trás.
"Mentira?"
- Qual foi negrão, nunca viu um defunto?
Nao respondi pro Luiz.
Apressei o passo e abri a porta.
Olhei no celular e marcava que estávamos no lugar certo.
???
Mas como, a corrida não era pelo aplicativo?. Marcava R$6,66
Olhei pra trás e não havia ninguém. Nada.
Ri de canto e pensei..
" Claro que não tem ninguém, ele tá lá, lá na maca. Morto.
Seria cômico se não fosse trágico
R$6,66.

Ampolas De SustosOnde histórias criam vida. Descubra agora