2.
Namjoon podia imaginar a origem dos primeiros sonhos. Há alguns anos, próximo a Tarim, haviam descoberto múmias reunidas num sítio arqueológico que acreditavam ser uma espécie de templo para celebrações fúnebres. A pesquisa dos arqueólogos e os exames de DNA revelaram coisas incríveis: havia corpos de origens diferentes ali naquele ponto da China. O que permanecia um mistério para os historiadores podia ser mais facilmente decifrado com a ajuda de profissionais de diferentes áreas, inclusive especialistas em linguagens, como Namjoon.
Todos os corpos estavam em ataúdes ornamentados, e à medida que os estudos do sítio arqueológico foram avançando e os resultados dos exames laboratoriais foram completando as peças que faltavam nos quebra-cabeças, um padrão foi notado: cada corpo havia sido preservado em urnas com escritos em línguas que correspondiam à origem do morto.
Uma das múmias possuía DNA correspondente a povos vindos da região onde hoje se localizava a divisa entre Coréia do Sul e do Norte. Kim Namjoon, linguista especializado nos primórdios das línguas originárias da península coreana era o profissional mais indicado para decifrar aqueles códigos em um dialeto desconhecido.
Academicamente Namjoon era prestigiado, reconhecido, aclamado internacionalmente até por leigos. Seu trabalho era realizado de forma rápida, precisa e meticulosa e havia também estampado algumas manchetes de jornais por ter decodificado diversos idiomas antigos e até havia sido contratado para criar a língua de um povo imaginário de uma série de TV ocidental. Mas a que custo? Criar o idioma do povo Terkuin do planeta Drafkd pra uma super produção inglesa havia sido justamente o estopim do divórcio porque havia se empolgado tanto com a ideia que havia se esquecido do dia fértil de Yerin depois de se trancar no escritório por dias seguidos, saindo só pra comer e ir ao banheiro e conectado ininterruptamente a uma reunião com historiadores e produtores da série, também workaholics.
Podia dizer que o trabalho vinha interferindo na sua vida atualmente também. Os sonhos começaram, afinal, quando a múmia chegou ao Museu Nacional da Coréia e Namjoon, contratado pelo governo em parceria com a Universidade Nacional de Seul, teve acesso às inscrições. Em um acordo que envolvia o governo de vários países, alguns dos corpos encontrados seriam enviados para estudo nos locais de origem deles, e as descobertas poderiam ser expostas em museus depois que fossem apresentadas algumas conclusões científicas para a comunidade internacional.
Normalmente um trabalho como aquele era feito à distância, e ele costumava traduzir e decifrar registros fotográficos e transcritos produzidos por profissionais que tinham acesso direto às descobertas arqueológicas. Mas como o museu e o ministério da cultura haviam fechado um contrato para exposição do esquife de quase 3000 anos, Namjoon ia enfim realizar o sonho de ver uma daquelas belezinhas de perto.
Havia uma certa pressão externa para que o trabalho se agilizasse, afinal, o museu iria realizar uma exposição em breve, o que alguns dos envolvidos achavam precipitado. Namjoon não se importava em trabalhar sob pressão. Tinha a cafeína a seu favor, então não se impressionou ou se pressionou com o prazo de 20 dias para descobrir o que o texto dizia e, junto com sua equipe, redigir uma tradução oficial para ser exposta junto ao corpo mumificado. O evento era histórico e todo o país comentava a descoberta e aquela exposição inédita. Para Namjoon, era também mais uma chance de estar em mais jornais.
Não era competente em seu trabalho pela fama e sim pelo conhecimento e por um senso de realização muito específico que só o trabalho podia oferecer: Adorava aquele tipo de desafio porque sabia que no fim, teria mais conhecimento do que antes, e porque saberia primeiro, seria o desbravador daquele saber.
Junto a sua assistente, Jihyo, foi até o laboratório onde pesquisadores de outras áreas normalmente faziam seu trabalho. O horário reservado para os linguistas era curto, e seriam acompanhados por profissionais que já estavam estudando aquela múmia. Os dois poderiam manipular o esquife para fotografá-lo. É claro que se emocionou por alguns instantes, quando se viu diante do artefato milenar, mas logo depois, voltou seu hiperfoco à sua tarefa, enquanto dirigia o ângulo das fotos que Jihyo tirava com uma câmera especial de altíssima definição.
Haviam inscrições na área interna também, e os pesquisadores teriam de abrir a tampa que guardava o corpo para que elas pudessem ser fotografadas. Quando a urna foi aberta, Namjoon sentiu um arrepio estranho. Era cético, um homem com fé unicamente na ciência e na humanidade, que não podia atribuir nenhuma razão mística àquela sensação inquietante, que teve que ignorar enquanto recebia um relatório dos resultados de algumas examinações que serviriam também ao seu trabalho de tradução.
Ainda durante aquele dia, em momentos de distração, vinham à mente do linguista a imagem do corpo ressecado e escurecido, enfaixado cuidadosamente e ainda conservando um semblante com uma estrutura impressionante. Não era possível imaginar precisamente o rosto, mas os traços delicados eram distinguíveis. Quando não estava se lembrando daquele rosto, ele e sua equipe se concentraram em reproduzir os códigos danificados daquele alfabeto tentando organizá-los em alguma lógica que fizesse sentido de acordo com as línguas antigas que já conheciam. E então, à noite, como de costume, trabalhou sozinho no alfabeto e quando foi para cama desabou, exausto.
E aí os sonhos começaram.

VOCÊ ESTÁ LENDO
Língua dos Sonhos
FanfictionKim Namjoon é um linguista famoso chamado pra decifrar as inscrições que adornam um corpo mumificado de 3000 anos. Desde então, o homem cético e viciado em trabalho passa a ter sonhos estranhos e inesperadamente... eróticos. 6k AVISO DE CONTEÚDO: s...