A ENCICLOPÉDIA CEREBRAL E AS NOVAS GAVETINHAS

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   Quando eu entrei no ginásio aos 12 anos de idade percebi uma mudança significativa na forma de amealhar novos conhecimentos, em 1957. Até então, na escola primária (hoje, ensino fundamental) havia uma única professora para a turma que ensinava tudo - alfabetização, história, aritmética, costumes, português, religião, etc - e quando cheguei ao ginásio havia um professor para cada matéria.

Achei, em princípio, bacana. Depois, fui verificando que algumas matérias que eu estudava - vou citar três delas para ilustrar: latim, francês, desenho  - não serviam para nada de minha vida de pré-adolescente momento importante na minha formação educacional.

Quem ensinava latim era um padre que conhecia fundamentos da língua que aprendera no Seminário de Santa Tereza, em Salvador, e rezava as missas lendo as frases em latim . O padre ensinava na linguagem que David Ausubel - psicólgo da educação estadunidense (1918/2008) chamava de mecânica, 'decoreba': Primeira declinação, segunda declinação, terceira declinação e assim por diante. E os alunos iam repetindo e copiando o que ele escrevia no quadro negro com uso de um giz branco.

O padre era funcionário público da SEC estadual e fazia sua parte porque o latim já era uma língua morta, mas curricular. Eu decorava as declinações para passar de ano e só. Depois, a SEC tirou o latim do ensino, creio, desde a reforma feita na igreja pelo papa João XXIII que aboliu o latim até mesmo das missas.

Assim aconteceu com o estudo do francês, que ainda resistia no final de domínio do culto à cultura francesa no Brasil. Na minha cidade - ligada a Salvador por uma linha ferroviária desde 1880 - tinha sua extensão com Paris, via mar, e os comerciantes e fazendeiros considerados ricos tinham em suas casas pianos, ouviam músicas clássicas (de preferência francesa) e falavam francês ao jantar, ou ao menos exigiam que suas filhas falassem. Uma exigência mais às mulheres do que aos homens, pois, consideravam um refinamento.

Sobre o desenho conheci algumas formas geométricas - finalmente vim saber o que era um cubo - mas era uma matéria semi-técnica que a gente estudava pouco, apenas o suficiente para passar. A cidade só tinha uma pequena livraria e papelaria e o dono foi obrigado a importar de Salvador alguns objetos que a gente desconhecia na vida comum- esquadros, compasso e lápis especiais.

Havia, ainda, o ensino da história universal. Menos mal. A professora falava das pirâmides do Egito, dos faraós, de uma cultura que a gente nunca tinha ouvido falar e que entendiamos pouco, que significava o Código de Hamurabi e outros ensinamentos. Era como se ela estivesse falando grego. O máximo que conseguiamos absorver desse velho mundo (dado relevante para nós porque passamos a ver que existiam outras culturas no mundo, mais antigas do que a nossa e melhores) era quando a professora mostrava imagens em livros que eram paupérrimos nesse tempo e não havia, no ginásio, nada em audivisual. Nesse campo, o cinema de nossa cidade, eventualmente, trazia alguma informação adicional.

Esse mundo dos faraós, das pirâmides, do Farol de Alexandria, da Grégia, do Império Romano, de fato, existia. Isso acrescentou muito ao nosso saber, ainda que de forma superficial, mas despertou uma curiosidade imensa.

Ausubel diz que há uma diferença entre o ensino mecânico e o significativo. Para que aconteça este último, a pessoa precisa ter alguns ensinamentos básicos acumulados no cérebro (desde criança) e formar determinados conceitos. A partir daí usa 'subsunçores', isto é, novos conhecimentos sobre determinados assuntos (feito uma escadinha, subindo cada degrau) e acumulando os saberes adicionais sobre os outros (velhos).

No ginásio, creio que, em português, ciências e história pratiquei o ensino significativo, porque fui aprendendo a interpretar textos, elaborar textos, sem decorar nada e sim acumulando novos conhecimentos de forma espontânea (ao contrário do ensino decorado e forçado do latim). Em ciência, havia, ao menos, a representação do homem em gesso e o formato dos órgãos do corpo humano. Foi a primeira vez que tive contato com um coração (de gesso) mas que a professora garantia ser igual (ou parecido) com os nossos. E era mesmo. E, em história, o cinema nos mostrava nas matinées aos domingos que esse mundo antigo existia, a Europa e o Oriente.

No conhecimento geral, o ginásio me proporcionou alguma régua e compasso como diria o poeta Gilberto Gil (a Bahia já me deu, régua e compasso/ quem sabe de mim sou eu/ aquele abraço) e foi isso que apreendi quando conclui o curso ginasial (4 anos) e meus conhecimentos estacionaram em determinado patamar.

Como a cidade em que eu morava no interior da Bahia não me oferecia algo mais em saber orientado (só me ensinava a mais o saber da rua, o popular, que acrescentava alguma coisa da vida prática) eu me mudei para Salvador.

Foi outro patamar, outro impacto, ainda que no início da década de 1960 os colégios públicos estaduais tinham pouquíssmos equipamentos e audiovisuais para avançarmos em conhecimento. Predominava, ainda, muita teoria e pouca prática. E senti isso, particularmente, quando duas matérias técnicas - Física e Química - tudo o que aprendíamos era na teoria. Foi um horror até porque estava focado em humanas.

Quando fiz vestibular para jornalismo, na Faculdade de Filosofia da UFBA, 1967, de tudo o que aprendi de forma significativa o português e o conhecimento geral me salvaram e passei. Então, vocês podem ver que tudo o mais - latim, francês, física, quimica, matemática, desenho, tubo de ensaio, etc - tiveram pouca serventia.

Na Faculdade, também teórica, as primeiras lições ou observações feitas pelos professores da área técnica - a linguagem de comunicação, sociologia, etc - era de que "se quiseres aprender o jornalismo procures uma redação de jornal".

Os impressos tinham as maiores e melhores redações de Salvador. Foi o que fiz, logo no primeiro ano, 1968, e quando me formei, em 1971, já era chefe de reportagem. Em tese, em conhecimento prático, já sabia mais do que os professores da faculdade. Nada demais, porque esse distanciamento entre a realidade da vida e o ensino universitário é normal.

Na universidade tem muita teoria e pouca prática. Forma sábios para a vida acadêmica, para os debates e tertúlias. Para a vida real é preciso mesclar os dois campos. Isso não é só no jornalismo, mas na engenharia, arquitetura, medicina e outros.

Como estou escrevendo neste livro sobre a harmonia entre as novas e as velhas tecnologias fui educado no campo formal da educação básica e do ensino superior com a ajuda das velhas tecnologias: quadro negro, giz, livros, pesquisa em biblioteca, dicionário, etc - e na minha vida profissional prática fui me adaptando as novas tecnologias por conta própria, migrando da máquina de escrever para o computador; do jornalismo impresso para o on-line.

Não foi muito dificil essa mudança porque o cerébro humano é como uma enciclopédia e ele harmoniza o velho com o novo. O que já está guardado de conhecimento antigo você vai mantendo numa gaveta e criando novas gavetinhas para colocar o novo. Não se misturam, vivem em harmonia. O que você não pode é fechar a gaveta do conhecimento e estacionar sem abrir as novas gavetinhas. Isso é de fundamental importância em qualquer idade. Quem para no tempo se ferra. A reciclagem é prioridade número 1. Lembre que as novas tecnologias foram criadas para facilitar a sua vida e não para complicar.

Por isso mesmo, lembro do padre e do latim; do cubo, do professor de francês com sua boina; e vou harmonizando com os algoritmos, os bytes e os tradutores simultâneos. Nem preciso mais me esforçar para aprender inglês ou alemão, os algoritmnos traduzem tudo para mim. Ainda assim, todo dia, quando abro meu whattsApp, por hábito, escrevo bonjour. E, rapidamente, vou ver as manchetes do Corriere dela Sera, de Milão.

É isso, vou alimentando minha enciclopédia cerebral com prazer, adicionando saberes em novas gavetinhas.

E como o jovem dos dias atuais, educado com o uso das novas tecnologias se comporta e adiciona novos conhecimentos? A capacidade do sistema nervoso em modificar sua estrutura e funções (neuroplasticidade) é inata e acontece durante toda a vida. Esse jovem, portanto, também vai abrir novas gavetinhas porque as tecnologias estão em permanente movimento.

O que hoje é novo para ele - o computador de mesa, por exemplo - daqui a 10 anos poderá não ser mais. Torna-se, velho. Mas, esse velho não pode ser jogado na lata do lixo, simplementes, porque estruturalmente os conhecimentos que você obteve com seu uso já estão armazenados para sempre no seu cérebro.

É isso, a convivência do velho (traduz-se, também, como padrões de experiência) com o novo é um moto contínuo.

A Cadeira e o Algoritmo -  A Convivência Entre as Velhas e Novas TecnologiasOnde histórias criam vida. Descubra agora